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O primeiro parágrafo, a primeira frase, a primeira linha, o começo, enfim, de um livro, pode ser um atrativo tão importante quanto o título, o resumo ou a capa. Um bom início pode encorajar a leitura, bem como determinar o estado de espírito positivo do leitor para ler o que se segue.
Como pode também entrar para história.
Algumas obras consagradas da literatura universal possuem, além da qualidade que naturalmente as consagrou, inícios brilhantes, tão ou ainda mais famosos que a própria obra. Quer pela elegância do período, quer pelo impacto que provocam, há inícios memoráveis, lembrados e citados e comemorados como ícones das próprias obras que inauguram.
A seguir, uma coletânea (recolhida de livros que gosto e que estão à mão) de alguns destes notáveis cartões de visitas. Uns são elegantes e requintados, outros são obscuros e desconcertantes, mas todos são, pra começo de conversa, inesquecíveis.
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“Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no coração de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama.”
John Fante, Pergunte ao pó; tradução de Roberto Muggiati. – 9ª edição – Rio de Janeiro : José Olympio, 2011.
Sobre o início emblemático de Pergunte ao pó, que atira aos ombros do leitor o alívio desse peso antes mesmo de prepará-lo para a carga que se segue, devo dizer que há outra tradução, de Paulo Leminski, para uma edição da Editora Brasiliense de 1984. Tive notícias de que esta é mais leal ao estilo do autor – mais pó, menos chão.
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“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”
Clarice Lispector, A hora da estrela; Rio de Janeiro : Rocco, 1998, 1ª edição.
Com esse início intrigante, Clarice prepara o leitor para a saga de Macabéa, que, antes de ser indivíduo, é o universo do seu deus, o escritor. O primeiro período da obra já sugere a densidade de um livro de muitas vertentes, que situa a própria linguagem no plano do enredo. O autor – alheio ao ‘deus’ que escreve, e que é o próprio ato de escrever – é personagem que narra a história de outra personagem – alheia à própria existência. Do ponto de vista do ‘deus’ que escreve, a linguagem se situa num plano intermediário para fazer parte da história. E por trás de tudo isso, Clarice Lispector.
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“Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, pra dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso.”
J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio; tradução de Álvaro Alencar e outros. – 5ª edição – Rio de Janeiro : Editora do Autor, 1965.
Nessa abertura, o personagem “pós-niilista” de Salinger já sugere, inconteste, ao que veio. A sua existência de personagem é a propósito de nada, exceto o da profunda angústia da sua própria existência; que o leiam, os que assim o suportarem.
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“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.”
Franz Kafka, A metamorfose; tradução e posfácio de Modesto Carone. – São Paulo : Companhia das Letras, 1997.
Clássico! Sobre esse início basta dizer que não se concluirá, jamais.
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“Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor.”
Miguel de Cervantes Saavedra, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha; tradução de Visconde de Castilho e Azevedo. – São Paulo : Nova Cultural, 2002.
Clássico dos clássicos! A vaga e levemente caricata descrição do personagem já sugere seu universo caótico e... Quixotesco!
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“No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se salpicado de cagadas de pássaros”.
Gabriel García Márquez, Crônica de uma morte anunciada; tradução de Remy Gorga, filho. – 36ª edição – Rio de Janeiro, Record, 2007.
Destino ou acaso?... O todo-poderoso onisciente narrador lança, já na primeira oração, o desfecho da trágica aventura do seu personagem, o anti-herói que, já aqui, se deixa retratar pelo viés do burlesco.
(Este é o primeiro da série de três inicios selecionados da obra de García Márquez, meu autor preferido durante muitos anos; perdoem, portanto, o meu gosto).
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“No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”.
Gabriel García Márquez, Memórias de minhas putas tristes; tradução de Eric Nepomuceno. – 13ª edição – Rio de Janeiro, Record, 2006.
Às favas as regras burguesas e a moral religiosa! Aos noventa anos de idade qualquer personagem pode se dar ao prazer de um desejo “escandaloso”. Sobretudo quando tal personagem existe sob a imaginação de um autor cuja pena, há décadas, subverte a realidade. Memórias de minhas putas tristes, como sugere o seu início, confirma o vigor narrativo e a vitalidade que persistem nas mãos provavelmente já sarapintadas de manchas senis do velho Gabo.
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“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo então era uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”.
Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão; tradução de Eliane Zagury; ilustrações de Carybé. – 59ª edição – Rio de Janeiro, Record, 2006.
Aquele que dentre vós for capaz de abandonar a leitura depois de um início desses, atire a primeira pena. A saga dos Buendía na fictícia Macondo se apresenta num correr de tempo relativo e impreciso, mas que acaba por se definir claramente numa época de importantes transições históricas e culturais, sem mencionar os intensos e obscuros conflitos psicológicos que se seguem. E esse início é, de tudo isso, a ignição.
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“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.’ Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.”
Albert Camus, O estrangeiro; tradução de Valerie Rumjanek. – 26ª edição – Rio de Janeiro, Record, 2005.
Com a palavra, o autor.
No prefácio, escrito em janeiro de 1955, Camus destaca o seguinte trecho: ‘Em nossa sociedade, qualquer homem que não chore no funeral de sua mãe, corre o risco de ser sentenciado à morte’. E, a seguir, comenta: ‘Eu quis dizer que o herói do meu livro é condenado porque não joga o jogo. (...) Uma ideia mais precisa do personagem emergirá se alguém perguntar como Mersault não joga o jogo. A resposta e simples: ele se recusa a mentir. (...) Ele diz o que ele é, ele se recusa a esconder seus sentimentos, e imediatamente a sociedade se sente ameaçada’.
Como disse antes, com a palavra, o autor.
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“Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha mu que vinha andando pela estrada e a vaquinha mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho engrachadinho chamado bebê tico-taco.”
James Joyce, Um retrato do artista quando jovem; tradução de Bernardina da Silva Pinheiro. – Rio de Janeiro : Objetiva, 2006.
Comentários sobre Joyce, que os façam aos eruditos...
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“Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo;(...)”
Raduan Nassar, Lavoura arcaica; São Paulo : Companhia das Letras, 1989.
E aqui conviria transcrever todo o primeiro capítulo, não fosse a volição de copiar, isto sim, o livro completo...
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“– Nonada.”
João Guimarães Rosa; Grande sertão: veredas; Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2001, 19ª edição.
Nada a acrescentar... ‘Nonada’.
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"No princípio criou deus os céus e a terra..." ...Just kidding!
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Para mais sobre o tema, o blog indica (mas não recomenda, porque ainda não leu) “E a história começa – dez brilhantes inícios de clássicos da literatura”, de Amós Oz (Ediouro, 134 p., 2007)
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