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...
–
Por favor, doutor.
–
Imagina, primeiro você.
–
Não, eu insisto...
–
Não, quem insiste sou eu, por favor.
–
De jeito nenhum. O senhor tem preferência.
–
Mas por que eu teria preferência?
–
O senhor é mais distinto, é doutor...
–
Ah, é por causa do terno! Imagina. Aliás, nem doutor eu sou. Sou um humilde advogado.
(A-han, sei...)
–
De jeito nenhum, você é mais velho: depois de você.
–
Vixe, será que eu sou mesmo? Essa roupa de faxineiro engana, viu...
–
Ah, que isso. Não se ponha nessa posição.
–
Não me ponho, não. Já estou nela desde que eu nasci. Já o senhor...
–
Já eu o quê? Só porque sou advogado você acha que nasci em berço de ouro?
–
De ouro não, mas em berço. Ou melhor, numa cama de maternidade particular e
logo levado para um bercinho bacana, não foi?
–
Hum
–
Pois então. Já eu nasci numa esteira suja e velha esticada no chão de terra
batida, lá em casa mesmo. Se é que podia chamar aquilo de casa...
–
Puxa, lamento saber, de verdade... E até por isso insisto: primeiro você.
– Até por isso!? O doutor acha que me dando a
vez na porta vai compensar essa vida miserável. Enquanto que a do senhor, né...
–
A minha o quê, rapaz? Já te disse, não nasci em berço de ouro, também venho de
família humilde.
–
Sim, mas de família. Já eu nem pai tive.... Aliás tive uns três, um pior que o
outro. Irmão, aí foi uma penca. Nem sei quantos direito, mas que criou foi
oito. Dos que criou, uns morreram de morte matada e outros tão preso. Minha
mãe, coitada...
–
Olha, sinto muito de verdade. Me desculpe, mas de qualquer modo eu quero te dar
a preferência. É uma questão de respeito, de cortesia...
–
“Sinto muito de verdade”? “Cortesia”? Essa aí pode até ser, mas “respeito”?!
Aff, fala sério, homem! O senhor vai é se sentir melhor, né? Consciência
tranquila, se mostrando que é boa gente... apesar de tudo...
–
Apesar do quê, rapaz? Agora já tá apelando, tu nem me conhece!
–
Conheço o tipo. Empinado, orgulhoso, trata os de baixo daquele jeito... é...
como é que é que fala mesmo...
–
Condescendente.
–
Ó, tá vendo, o senhor sabe.
–
Não, eu só... olha, chega de palhaçada. Vamos fazer uma coisa, a gente tira no
par ou ímpar, daí quem ganhar...
–
Par!
–
Ímpar! Ganhei, você primeiro.
–
Uai, mas o doutor ganhou, o doutor passa primeiro.
–
Não. Eu ganhei, eu escolho: você primeiro.
–
Vô não. E ó, quer saber o que mais? O senhor, sua maternidade, seu diploma, seu
terno, vão tudo à.... – quando alguém
grita lá do fim da fila:
–
Vocês aí na merda da porta, ou caga ou sai da moita!
...
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