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Detalhe de Cristo carregando a cruz, H. Bosch, 1490
(Museu de Belas Artes, Ghent, Bélgica)
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O gênio de Gogol é precisamente a ondulação - dois e dois são cinco , e até sua raiz quadrada.
(V. Nabokov)
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Paul Valéry ensina: “quem pretende falar ao público sobre obras alheias deve fazer todo o esforço para entendê-las ou pelo menos determinar as condições e os constrangimentos que o autor se impôs e que se lhes impuseram”. Quanto ao conto O Nariz, de Nicolai Gogol, muito já foi dito, escrito e especulado. Permito-me, contudo (depois de breve resenha, livre de spoilers).
Local, São Petersburgo, capital setentrional do vasto Império Russo. Época, o conturbado e desigual século XIX, de sociedade contaminada pela burocracia (na obra de Gogol, os ‘funcionários públicos’ – ou a paródia deles – encarnam os papéis mais burlescos e cruéis, capazes que são das maiores mazelas no encalço da ascensão social).
Certa manhã, ao cortar o pão, o barbeiro Ivan Yakovlévitch encontra um nariz enterrado na massa. Aturdido, acusado pela esposa de ter decepado as fuças de algum cliente, o pobre reconhece o órgão: pertence (ou pertencera) à M. Kovaliov, assessor do colegiado, barbeado por ele recentemente.
Entrementes, Kovaliov acorda na própria casa e dá por falta do nariz – na cara, só a superfície achatada onde antes repousava o barroco órgão (só não tão rococó quanto à orelha...). Desesperado, nosso anorrinco personagem inicia a série de suas desventuras. Procura as autoridades – que o ignoram e tomam por louco – e sai a vagar, desnarigado, pelas ruas. Encontra, finalmente, o Nariz (não por acaso agora referido com inicial maiúscula) sob forma humana. Ele, o Nariz, desembarca de uma carruagem e entra naquela casa; sai, minutos depois, sob uniforme de conselheiro de Estado, com o rosto (rosto?) oculto pelo colarinho alto e chapéu de dois bicos. Segue-se um improvável diálogo entre Nariz e desnarigado, e a história avança... O final (ou finais, já que a obra teve três versões) não chega a ser surpreendente, mas é emblemático.
Quanto às análises desse conto de situações tão absurdas e burlescas, já o relacionaram com certo fascínio nasal típico daquele século XIX, quando também Carlo Collodi concebera seu célebre Pinóquio; já o referiram influenciado pela atmosfera espiritual pré-romântica do mesmo século, quando o ‘diabo’ era freqüentemente mencionado (pouco tempo antes, Goethe escrevera o Fausto); e já o reputaram (assim como Tchitchikov, de Almas Mortas, ou Khlestakov, de O Inspetor Geral) a figura de ‘anticristo’, em inusitada interpretação ‘apocalíptica’ da obra de Gogol e de Dostoievski (em Gogol e Dostoievski ou a Descida ao Inferno, de um certo Paul Evdokimov). Teria sido, também, O Nariz, a inspiração (nariz, inspiração...) de Dostoievski para escrever seu único conto fantástico: O Crocodilo, “pura brincadeira literária, unicamente para rir” (segundo o próprio, em Diário de um Escritor). E por último, mas não menos importante, uma ‘leitura’ freudiana: não são raros os que vêem no nariz rebelde uma espécie de superego do personagem, que desprovido da censura às suas pulsões fundamentais, se vê a mercê de si próprio, despido da moral que o faz aceitável naquela sociedade hipócrita e burocrática. Daí seu desespero, a ânsia incontida em recuperar a própria interdição de si...
Na conclusão da primeira versão, de 1935 (o livro teve três finais distintos em três diferentes edições, como mencionei), Gogol limita-se a acordar Kovaliov de um sonho – tudo não passara de um sonho, e tudo voltaria à perfeita normalidade... De acordo com o próprio autor, Aleksandr Pushkin lhe teria sugerido alterar substancialmente a primeira versão, ao que de pronto concordou – talvez Gogol não tenha gostado da solução ‘fácil’ para o “tamanho despropósito que acabara de produzir” (como ele mesmo se refere à obra). No fecho da última versão de O Nariz, Gogol pondera sobre o que acabara de escrever: “Não, isso não se sustenta de pé, eu não compreendo de modo algum... Mas, o que há de mais estranho, de mais extraordinário, é que um autor possa escolher semelhante assunto... Eu confesso que isso é, deste modo, absolutamente inconcebível, é como se... não, não, desisto de compreender” (L&PM, 2007, p. 52).
Enfim, minhas próprias digressões:
Não seria interessante considerar este órgão, dos mais prosaicos que o ser humano carrega em si, como um símbolo de clarividência, de intuição e de sabedoria? Seria obra do acaso a existência de expressões como 'meter o nariz', 'ver além do nariz', 'saber onde está o próprio nariz', 'de nariz empinado', 'dono do próprio nariz', entre outras tão comuns e despercebidamente filosóficas? Porventura tais expressões não se referem precisamente à clarividência, à intuição e à sabedoria? Gogol teria isso em mente quando concebeu o seu Nariz? Seria casual o uso de uma gama de recursos de metalinguagem (e com maestria), a criar esse jogo de contraposições dialéticas entre personagens, autor e leitores, deixando em um estado de suspensão o que está dentro e o que está fora do texto? Ou quem escreve, quem fala e quem lê? Eis, a título de exemplo, uma propositada digressão do tempo narrativo, quando o autor busca recuperar o prumo perdido em função dos absurdos do relato até então: “(...) novamente a aventura se perde numa névoa tão espessa que ninguém jamais pode desvendá-la”.
Análises e digressões à parte, O Nariz é conto delicioso, tipicamente gogoliano, mas escrito sobre o trivial, e que se deixa ao sabor do trivial. E que, na medida de uma grande metáfora, apresenta todos os contornos de crítica burlesca à sociedade de São Petersburgo e da Rússia czarista. Além de ser, naturalmente, interessante e desafiadora caricatura literária, avaliada pelos aspectos peculiares da construção dos personagens, da descrição dos ambientes e do caráter circunstancial sobre o qual a trama se desenvolve. E que eu recomendo, sem reservas... Apesar do ‘despropósito’.
“Uma mosca sem importância
poisa com a mesma alegria,
na careca de um doutor,
como em qualquer porcaria...”
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