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O pequeno precisa erguer o bracinho franzino para alcançar a mão forte, calejada, dedos grossos, unhas toscas, no meio da qual a sua some com força; inquietos olhinhos brilhantes piscam assustados de um lado para o outro, ciscando imagens demais ao incompleto entender infantil.
De vez em quando olha para cima, a arguir em silêncio um algo do pai (o homem, com a fleuma das estátuas, às vezes espia mudo embaixo, quase sem mover a cabeça); de vez em quando olha para baixo: a malinha, sob o farnel, a esperar, como ele.
A maioria das imagens, as perderá para sempre, levadas pelo tempo à deslembrança; algumas, um algum número delas, o menino haverá de tê-las, inolvidáveis, até o dia inevitável.
A imagem do pai, do corpanzil engolido pelo terno inédito e puído, um azul-marinho assomado enorme e inerte ao seu lado, será uma das indeléveis..., e das últimas que levará dele.
Lembrará também durante sempre o cheiro envolvente que, muito embora de um ligeiro nauseante, trescala novidade; o odor - misto de óleo e fumaça - haverá de evocar muitos déjà-vu.
Decerto levará lembranças, memórias aturdidas; de uma, principal, nunca haverá de esquecer: na confusão da plataforma plangente descobre a menina a caminhar na sua direção, vestidinho caseiro de chitão, laços pareados na cabeça loura - um mais alto que o outro; do adulto que a conduz só vê o antebraço, o mais não importa.
A menina se aproxima..., passa por ele e sorri acanhada, e olha para ele ao passar... "ou não?!" , confunde-se, o pequeno; quer falar com o pai, espia no alto aquele rosto constante e suplica: "pai, eu gostei dela...", mas diz só no pensamento... seus olhos perfeitos marejam, se os dela convergem oblíquos - e vai-se, a menininha vesga.
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Vagão de passageiros; sentadinho junto à janela padece tanta saudade que nem consegue chorar; cabecinha encostada na vidraça lembra muitas coisas, olhinhos perdidos na plataforma enxergam nada.
Lembra da mãe...
Sufoca choro no peito, perto ainda da garganta na sua anatomia infantil; lembra de casa... e lembra a menina zarolha meio olhando pra ele com risinho sem graça, nos lábios vermelhinhos, vermelhinhos!...
‘Piuííí!’ - o apito colhe a sua tristeza.
‘Piuíííii...’ - nasce súbito, cresce agudo, morre rouco.
Ao apito sucede sacolejo seco e bruto - o primeiro, que faz o peito saltar de susto; o som agora é cadenciado, vagaroso, ritmado, acelera; mais ligeiro, cadenciado, compassado, e acelera; mais ligeiro, compassado, acelera, e acelera, e acelera...
A estação, qual o diorama do parquinho da quermesse, corre para trás, mais e mais veloz, até acabar; agora, casas, postes e gentes correm ligeiros de marcha à ré.
E ele oscila miúdo com o sacolejo do gigante de ferro - e pensa na mãe -, e chacoalha, e balança, sonolento - pensa na menina zarolha -, e chacoalha, e cochila...; abre os olhos, e balança, pestaneja - sua mãe carrega a menina zarolha no colo -, e chacoalha, e cochila - sua casa, seu terreiro, seu cão... -, e balança, fecha os olhos, abre os olhos - a menina zarolha na sua casa, com a sua mãe - e balança, sacoleja, e balança... olhinhos se fecham...; dorme...
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Acorda estranho, passando por lugar desconhecido: não sabe se hoje já é amanhã...; pelas janelas do vagão agora correm ligeiras umas paisagens que não as suas.
Chega enfim naquele lugar estranho; vai morar lá.
A mãe morrera há pouco.
Vai morar com a tia.
O pai morrerá em breve.
Viajará outras vezes de trem;
a menininha zarolha, esta não verá outra vez...
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..a menininha zarolha, esta não verá outra vez...
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