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O autor
“Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o que estou escrevendo…
Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo.
Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever.
Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, mas não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.
Antecedentes meus do escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto.
Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim.
Também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.
Meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases.
As coisas acontecem antes de acontecer… cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a.
Tudo no mundo começou com um sim.
Sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento… cada dia é um dia roubado da morte.
(Os fatos são sonoros, mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro que me impressiona. Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo).”
A história
"Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de chuva caindo… e é claro que a história é verdadeira embora inventada.
Afianço também que a história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro bem na esquina.
O que escrevo é mais que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida.
Pois reduzira-se a si (também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim, mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus – esse vosso Deus que nos mandou inventar).
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço… (cara de tola, rosto que pedia tapa).
Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão… Com dois anos lhe haviam morrido os pais de febres ruins… Criada pela tia beata.
Do contato com a tia ficara-lhe a cabeça baixa.
A tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o fígado. Sendo assim, obediente adoecia, sentindo dores do lado esquerdo oposto ao fígado… nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida.
Como ela, há milhares espalhadas por cortiços… Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma relcama por não saber a quem? Esse quem será que existe?
Sei que há moças que vendem o corpo… Mas a pessoa de quem falarei, mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ele é virgem inócua, não faz falta a ninguém… incompetente para a vida.
Faltava-lhe o jeito de se ajeitar.
Ela que não parecia ter sangue a menos que viesse um dia a derramá-lo.
Talvez já tivesse chegado à conclusão de que vida incomoda bastante, alma que não cabe no corpo, mesmo alma rala como a sua.
Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o seguinte: já que sou, o jeito é ser.
Não sabia que era infeliz.
Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz.
E achava bom ficar triste… aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica.
(Mas) ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
...nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim.
…nunca tinha tido coragem de ter esperança.
…pela primeira vez ia ter um destino.
Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez!
Atropelada!
…e da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico.
Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça.
Silêncio.
O silêncio é tal que nem o pensamento pensa.”
…
“E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.”
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Os textos acima foram montados a partir de excertos recolhidos aleatoriamente de “A Hora da Estrela”, penúltimo romance e último livro publicado em vida pela escritora Clarice Lispector.
Só mesmo a densidade de um livro com tantas vertentes, que situa a própria linguagem no plano do enredo (e com ela, a existência e a sociedade), pode se prestar a tal exercício de síntese. O autor – alheio o ‘deus’ que escreve, e que é o próprio ato de escrever – é personagem a narrar a história de outra personagem – alheia à própria existência. Do ponto de vista do ‘deus’ que escreve, a linguagem se situa num plano intermediário para fazer parte da história.
E por trás de tudo isso, a escritora, Clarice Lispector.
Sobre ela, ela mesma:
"Há um silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras.”
"…que minha solidão me sirva de companhia.
que eu tenha a coragem de me enfrentar.
que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo."
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