.
..
...
(Para Lucas e Carol)
Se o assunto é apelido, não há povo mais criativo que o brasileiro. Somos ligeiros e certeiros – e cruéis – na cunhagem da melhor alcunha que quase sempre gruda feito praga de mãe. Basta um deslize, uma rateada, ou a mera e inevitável existência daquela proeminência inata ligeiramente mais evidente, ou apenas a mais singela manifestação de um leve trejeito particular, e o infeliz é vítima do segundo batismo. O incauto recebe então seu cognome, o mais emblemático possível, fração de segundo após o flagrante do fato gerador ou a descoberta da característica motivadora.
É infalível: claudicou no repertório, lá vem antonomásia! Escorregou no vernáculo, tome o prosônimo! Seja a criatura assim abençoada pela mais discreta protuberância, aceite a apodadura! Manifeste o sujeito, ainda que de leve, aquela mínima fosquinha peculiar, não recuse o epíteto, que resistir é pior. Deveras, depois de colado, o título assumirá o mesmo prestígio – ou até maior – que a própria graça registrada em cartório.
Senão, vejamos, numa comparação com os nossos amigos do norte, cujos nomes e (simplórios) apelidos nos chegam pelas claquetes de roliúde.
Lá, os sobrinhos do Tio Sam se limitam a abreviar os próprios nomes muito mais por preguiça do que por troça, ou por arte. O próprio Tio Sam (personificação norte-americana que, segundo alguns, teria sido inspirada em Abraham ‘Abe’ Lincoln; mas, conforme outros, maior semelhança teria com Andrew ‘Andy’ Jackson), ele mesmo tem um apelido que não passa de cândida corruptela de Samuel, e que serve também para Samanta, ou para Samara, ou Samir, e para tantos outros nomes mais, seja lá qual for a origem. E por essa mesma via Thomas vira Tom e Edward se transforma em Ed, Pâmela se reduz a Pam e Débora em Débi, William se resume em Will e Albert se encurta em Al. Nada além de singelos hipocorísticos, meras corruptelas do nome de batismo.
Mas aqui, na terra em que o próprio gentílico se deixou chamar de brasuca (com registro em dicionário e tudo) em vez de brasileiro (por sua vez, menos gentílico e mais ofício), aqui a coisa é bem diferente.
Ignoremos os urbanos Dudus, Cacás e Gugus, Tátis, Pátis e Dânis; excluamos as diminutivas Fatinhas, Cidinhas e Lourdinhas do interior; abandonemos, também, os tradicionais lugares-comuns dos Bolões, Cascões e Cabeções. Entremos, sem demora, na criativa seara dos pseudônimos forjados no dia-a-dia dos nossos autênticos apelidados e apelidadores. Além dos Zezés, Benés e Dedés, para adiante das Vivis, Lilis e Fifis, sem mencionar os Vavás, Didis e Pelés, os Zicos, Zizinhos e Tostões herdados da cultura ludopédica, existe uma fartura de apelidos inusitados, próprios de cada lugar, de cada cidade, de cada arraial. Mesmo com tantas cartas fora do baralho, ainda assim se nos descortina a vastidão de curiosos e coetâneos antroponímicos, esta vasta planície de Pelancas, de Espancas e de Potrancas, de Feitiços, de Roliços e de Coriscos, de Fundengas, de Futricas e de Fumanchus, apelidos coletáveis, e sempre abundantes, pelos rincões do país adentro.
O arraial da minha infância era prolífico de apelidos. Lá as pessoas se conheciam mais pelos velachos que pelo próprio nome cristão. Era comum chegar um forasteiro a perguntar pelo “senhor Antônio Pereira da Silva, por favor” e ninguém dar notícia do fulano, cada um garantindo que “aqui não tem ninguém com esse nome, não sinhô”. Até que, depois de um tempo, algum iluminado realizava: “ah, é o Totonho Pingola!”
Eu me lembro de ter conhecido uma verdadeira fauna, digna de qualquer zoólogo, no arraial da minha infância. Tinha o João Bicho, o Pedro Lobo e o Boca de Arrã; havia também a Piabinha, a Maricota e a Cuíca; tinha o Gambá, o João Grilo e o Dito Tatu, a Joaninha, a Sinhá Macaca e a Cotia. Toda essa bicharada, sem mencionar a fauna ornitológica: a Pombinha, o Curiango, o Tiziu, o Zé Tetéu, a Maria Maritaca, o ‘seu’ Coruja, a Jacutinga... Cada um daqueles zoônimos, segundo relatos dos próprios apelidados, referia-se a eventos e fatos, reais ou lendários, concretos ou abstratos, que se perpetuaram nas alcunhas dos seus alcunhados.
Mais comuns, mas não menos interessantes, verdadeiros desafios etimológicos para qualquer linguista, eram os apelidos onomásticos, aqueles derivados do próprio nome por misteriosos meios e modos. Era assim que José virava Juca, Zeca ou Zezé, que Antônio se transformava em Totonho, Tonho ou Tonico, e Maria em Marica, Maricota ou Mariquinha. E ainda o Joaquim, que virava Quinzinho ou Quinzola, e o Sebastião, transfigurado em Tião ou Tatão, e o Francisco que, coitado, virava Chico. Isso só para citar alguns, de uma longa fieira que cresceria muito mais se nela fossem aditados os simples diminutivos e aumentativos.
Havia, igualmente comuns, os apelidos de ofício, que rotulavam o dito-cujo de acordo com a sua atividade. Certo é que, nesses casos, cada rotulação costumava vir precedida pelo nome cristão do apelidado, ou por sua corruptela. E assim quedavam-se batizados ‘seu’ Zé Pedreiro e dona Rita Costureira, a Dasdô Parteira e a Maria Lavadeira, o Toninho Ferreiro e o Tião do Fole, a Fatinha Doceira e o Geraldo Barqueiro, o João da Venda e o Zé da Farmácia. E a lista dos apelidos culinários, espécie de cânone da cozinha mineira! Tinha o Feijão, o Tutu e o Pão de Queijo, o Zé Arroz e o Tião Mingau, o Chuchu e o Batata, o Mané das Couves e o João Biscoitão.
Curiosas também eram as titulaturas adjetivas, pérolas da antonomásia, deliciosas expressões de eufemismo. Umas eram laudatórias, ostentadas com orgulho indisfarçável; outras, inevitáveis, enfrentadas com paciência e resignação. Mas, inolvidáveis mesmo, eram as jocosas e pejorativas, repudiadas com veemência e, não raro, com violência pelo apelidado. No primeiro grupo incluo o Zé Prezado e o Tião Beleza; no grupo dos resignados estão o João Cansado, o Zé Fiado e a Maria Só; e no terceiro grupo, o Beiçola, o Juca Frouxo, o Zé Lalau, a Lili Prexeca, a Zélia do Padre, o Troca-troca, o Zé Rachinha... E por aí vamos.
Existiam, também, aqueles apelidos de origem perdida no tempo, muitas vezes até para o próprio alcunhado – ou por sincero esquecimento ou por conveniência, haja vista o provável ridículo do fato gerador. Assim jamais se saberá o porquê de Zé Ruela, de Setenta ou de Tião Frangão, de Ducha, de Polica ou de Jão Tanjão, de Manicera, de Suspiro ou de Viúva (dona Viúva, a zeladora da igreja, que jamais se casara...).
Lembro que havia esse tal de “Tum”, cujo monossilábico apelido era uma espécie de onomatopeia para o único som que o homenzinho atarracado e maltrapilho conseguia emitir quando chegava para as gentes de mão em concha pedindo uma moeda ou um pedaço de pão. A propósito, o Tum tinha três meios-irmãos: o Cudo, o Zé Cascavel e o Chico Barraca, cada um filho de um pai diferente (e desconhecido), todos filhos da Pimbinha.
Algumas alcunhas eram diretas, criadas a propósito do que queriam dizer. O Tamborete, a dona Beata e o Soneira são bons exemplos dessa categoria. Mas aquelas engendradas na base da ironia eram as melhores, de modo que o Pobreza era o cara mais rico do lugar, o Meiquilo pesava dez arrobas, o Tiradentes era careca feito um ovo, o Tião Cheiroso, coitado, desafeto dos banhos, a tia Cosquinha contava uns causos sem graça, e a Mercezinha Pureza... A Mercezinha Pureza era, por assim dizer, bem generosa com os meninos.
Lembro agora os apelidos criativos, ou especialmente criativos, como o caso do Ecossistema, colega da escola que exalava um odor (eufemisticamente) peculiar, gerado pela fauna-e-flora que mantinha no próprio sovaco. E do moleque magricela, saco de pancada de todo mundo, que até a própria mãe chamava de Tarzan. O Cachoeira, moleque bom de pipa que não tirava o olho do céu mesmo com o catarro a escorrer copioso pelo nariz. E o menino Ticrica, garoto habilidoso na bola-de-gude, que ‘cricava’ qualquer um ou para fora do triângulo ou pra dentro da caçapa.
Mas, bons mesmo eram os apelidos de ocasião, que cada um invariavelmente receberia, mais cedo ou mais tarde, em função de um acontecimento inusitado. Seria assim com o Reginaldo – já, então, o “Naldo” – que passaria a ser o “Sabão” desde o dia em que o flagraram no banheiro da escola degustando um pedaço desse produto. Ou com o Paulinho, que numa tarde na represa tinha certa peça íntima inapelavelmente frouxa e encardida, ao que receberia para sempre o honroso título de “Cueca”. E a Tininha, menina saliente que teve acrescido ao nome o epíteto de “Siririca” por motivos óbvios. Tem ainda a história do “Lambari”, o moço que vendia leite de porta em porta e que num belo dia a freguesa viu descer no meio do jorro branco um lambari douradinho, douradinho...
Para concluir esse já maçante circunlóquio, conto agora a história do Dilsinho, um companheiro das brincadeiras de infância. Num jogo de polícia-e-ladrão, o Dilsinho – nome de batismo: Adilson – amoitou-se tão bem amoitado que ninguém achava o moleque. A turma dos ladrões todo mundo já preso, o sol já baixando na várzea, as mães nas janelas já berrando “vem-pra-casa-menino!”, e nada de achar o guri. Pelas tantas, já depois do lusco-fusco, eis que de supetão sai o Dilsinho de um buraco lá no canto da cerca. Sai ele na carreira, assustado, olho esbugalhado, com cara de choro e berrando “UMA TORONHA! UMA TORONHA!”...
Explico: muito bem escondido no seu buraco, feliz com o abrigo camuflado no meio do mato que lhe proporcionaria o triunfo na brincadeira, o Dilsinho não percebeu aquela enorme e peluda, com cerdas vermelhas hirsutas emergindo dos tufos de pelagem cinza, aquela monstruosa e horripilante taturana-rata que entrou sorrateira no esconderijo para lhe fazer companhia...
Hoje, lá no arraial, se procurarem pelo ‘seu’ Adilson Nunes da Silva, pedreiro, pai de quatro filhos, ninguém vai saber quem é. Até algum iluminado lembrar a quem ainda pertence aquele nome inútil e informar, solícito: “Ah, o Toronha! Ele mora ali, naquela casinha branca cheia de telas nas janelas”...
...
..
.