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O tema é polêmico; a proposta, intrigante. Título e capa são sugestivos, de cores intensas. Li o prólogo (gentileza do autor, que enviou por e-mail) e gostei da forma. Tudo isso, combinado à minha própria história, gerou expectativa (a melhor maneira de se decepcionar, dizem por aí...).
A expectativa para a leitura de Ímpio, o evangelho de um ateu (*) existia, portanto. Mas era, como geralmente se espera de um autor (para mim) desconhecido, apenas a expectativa de uma leitura razoavelmente boa. Talvez, quem sabe, pudesse até reforçar minha crítica a “essa coisa de religião...” Talvez até contribuísse com algum elemento novo para meus argumentos agnósticos (ou ateístas?...) Mas a expectativa era, como ali está, de uma boa leitura. Ponto.
Foi muito mais que isso... Tanto que aqui estou, digitando estas mal traçadas.
A exemplo do autor, também fui desde pequeno adestrado na religião; diferente dele, meu adestramento ocorreu na igreja católica – para mim, os esquisitos, os hereges, a “ameaça”, eram os crentes. Como ele, também não entendia porque as coisas deveriam ser como eram, tampouco aceitava de bom grado determinismos como “deus quis”, “deus sabe o que faz”, “os desígnios de deus são imperscrutáveis...” Eu questionava, e as evasivas me faziam questionar cada vez mais.
Mas toda essa experiência “católica” ficaria relegada ao lábil plano da memória, apenas mais um dos afrescos etéreos do passado, trazidos vaga e ocasionalmente ao presente com suas cores já muito esmaecidas.
Se na meninice meu relacionamento com as coisas da fé era menos que morno, e depois gelaria de vez no frigobar do catolicismo, haveria um tempo, anos depois, de uma experiência mais intensa (e fugaz), como crente pentecostal. A intensidade era tamanha que, ao cabo da breve experiência, eu seria catapultado para bem longe do fervor religioso, como o incauto que a força centrífuga arremessa de um carrossel desgovernado. Meu lapso de crente pentecostal me converteria do catolicismo não praticante ao secularismo – não praticante; e, depois de algum comodismo, a uma postura cética e crítica dos dogmas, doutrinas, morais e preceitos de cunho religioso, sobretudo cristão (meu obrigado, portanto, a Igreja Batista Central de Brasília).
Todavia, contra todos os ditames da sensatez e da razão, questões subliminares insistem em permanecer. Num descuido, o ser pensante se percebe surpreendido por perguntas tolas – para as quais, aliás, há respostas sempre razoáveis, mas que parecem embotadas por uma névoa irracional, uma espécie de turbidez causada talvez por um resquício de ainda “querer crer” (?). Um exemplo rápido: “Se há tantas religiões e deuses, por que o cristianismo foi (e é) tão poderoso, se não por força da intervenção divina?” Uma resposta razoável poderia ser: “estava na hora certa, no lugar certo”. Sim, há respostas sensatas. Sempre há, mas as tais questões subliminares às vezes “espicaçam como um moscardo...”
Pois bem, Ímpio, dentre outros atributos, oferece uma segurança adicional na formulação dessas respostas razoáveis. Ao mesmo tempo em que as “perguntas tolas”, além de mais raras, parecem se tornar ainda mais tolas. Não que haja no livro uma fórmula extraordinária, algum novo e irrefutável contra-argumento ao proselitismo vago e frouxo dos argumentos teístas (aliás, nunca haverá argumento sólido o bastante contra algo que “se sente”). O que há no livro é a realidade retinta, narrada pela franqueza e pela coragem de um sujeito que viveu as experiências do devaneio religioso e que possui os elementos necessários para interpretá-las a luz da razão – sem falar do talento para converter tudo isso em um texto de leitura muito agradável. Fábio Marton é, sobretudo, honesto no que escreve.
Sim, além de importante como referencial de lógica contra a perigosa fantasia da fé religiosa, e além do viés sociológico do tema, despretensiosa e ricamente explorado pelo autor, o livro é também de uma honestidade impermista. E é gostoso de ler. Tem seus impactos de emoção e sua ironia (importantíssimo), tem consistência narrativa e fluidez (difícil largar); tem, inclusive, passagens memoráveis, como o episódio de onanismo saborosamente narrado na página 71. E tem, por último, mas fundamental, sólido vigor conceitual, como o que se observa no trecho das páginas 186 a 191 – Como deixei de ser crente nº 5: respondendo a alguns filósofos cristãos (como esta, há outras inserções impressas em páginas negras, impacto adicional à percepção e às reformulações do leitor).
Como o propósito aqui não é fazer crítica literária (nem poderia, por absoluta falta de diploma), volto às singelas impressões de leitura. E uma delas, talvez a mais significativa, é que a leitura de Ímpio permitiu que eu voltasse a crer em deus...
Isso mesmo, e o deus no qual agora creio se chama “eu”. “Eu”, ao mesmo tempo completo e fragmento, um todo em si – existência – e parte de um tudo – universo; um entre milhões, bilhões de “eus” pretéritos, presentes ou futuros, cada um sofrendo sua dor e gozando seu prazer, todos livres do medo e libertos da culpa, senhores da própria consciência, fiéis à própria razão, leais à própria ética. Meu novo deus não é onisciente (aliás, sabe quase nada), tampouco onipotente (é muito fraco, até), mas é o único no qual eu posso razoavelmente confiar. Mas que, no final das contas, é pelo menos onipresente: está comigo o tempo todo, desde que eu assim o permita.
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(*) MARTON, Fábio. Ímpio : o evangelho de um ateu. São Paulo: LeYa, 2011.
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