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E, como prometido na última postagem, o tema ainda é a morte (ou a ausência dela), agora sob a perspectiva de duas grandes obras de dois grandes autores.
Em “As intermitências da morte” *, com a ironia e com a elegância de sempre – e como sempre dispensando travessões e verbos dicendi – José Saramago constrói uma fábula, no mínimo, instigante. A morte, aqui convertida em personagem, confronta os humanos mortais com a sua ausência: a partir de agora, a morte está de férias; a partir de agora, ninguém morrerá.
Daí, o autor desenvolve de maneira hábil, criativa e bem-humorada uma crítica à própria vida, com as suas morais, com as suas tradições, com as suas instituições e, sobretudo, com a premência da sua brevidade – não obstante o arcano e inglório desejo humano da continuidade, que agora é posto em cheque (cuidado com o que você deseja...).
Neste novo cenário de promessa de imortalidade tudo é posto em cheque. Cada pessoa é confrontada com a benção (ou com a maldição) da não-morte; cada família se vê às pelejas de lidar com seus moribundos que se recusam a morrer; cada instituição - das agências funerárias às companhias de seguro, do estado à igreja - é chamada a resolver as questões que emergem desta nova realidade. E, de modo especial (que elejo como tal por razões minhas), a igreja, que Saramago não poupa da sua crítica ácida e contundente – e, como já dito, elegante e bem-humorada. Senão, vejamos:
“A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, (note aqui, traço característico do discurso direto de Saramago, a maiúscula indicando a alternação do diálogo em vez de aspas ou de travessão) Ainda que a realidade a contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito outra cousa que contradizer a realidade, e aqui estamos.” (página 20)
“(...) qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido.” (página 35)
“As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. (...) é para isso mesmo que nós (igreja) existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada sua hora, acolham a morte como uma libertação.” (página 36)
"A igreja, como não podia deixar de ser, saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro" (página 75)
Sem delongas, aqui me despeço de Saramago. Uso apenas quatro parágrafos desta novela – que sei: é muito mais rica do que isso – para tentar condensar (com as devidas escusas de ente desidioso) toda a sua crítica política, social e filosófica numa única pedrada desferida contra a janela de vidro da religião, mas que representa todo o resto... Aos bons ouvidos, um sussurro é um grito.
E quanto à Borges, o que diz ele sobre a não-morte?
Assunto para a próxima postagem.
* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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4 comentários:
Segundo o escritor espanhol - Noel Clarasó:
“A vida é um naufrágio onde, na última hora, só se salva o barco.”
“Porquanto para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro.”
Há horas em que a vida cansa...
Marcello, eu não li esse livro do Saramago, mas os trechos que você citou dão bem a mostra do indispensável (e raro) humor (sim, humor!) do escritor português.
Um abraço.
Olá Marcello,
bacana demais!
moço, tenho o José Saramago, o melhor que já li, ele tem um humor fino, e uma visão do ser humano, principalmente neste mundo 'moderno' que fico espantada com esta sua capacidade de colocar, é admirável.
Comecei, um tempo atrás, a ler As Intermitências, mas parei e sei que vale começar a ler de novo e ir até o fim
Já li O Evangelho, Ensaio sobre a Cegueira e A Caverna (pra mim o melhor) e outro dia com as meninas numa livraria, enquanto elas se divertiam com os livrinhos, li as primeiras páginas de Caim, a forma dele se relacionar com a igreja/religião é fantástica, é de um sabor incomparável.
Já fiz algumas postagens sobre A Caverna, não do jeito que você fez ou do jeito que o Professor Halem faz, foi literalmente transcrição dos textos.
Parabéns pelos textos
abraço prati
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Anônimo, não sei bem se concordo integralmente com a primeira frase; da segunda, discordo, sem dúvida.
Obrigado pela visita e comentário.
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Halem, recomendo, viu? Aliás, recomendo todos do Saramago que já tive oportunidade de ler.
Grande abraço
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Vais, menina, sabe que vc é a terceira pessoa a me recomendar 'A Caverna', só nesta semana? Bora correndo ler.
Obrigado e um abraço.
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