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Bons filmes não aspiram, necessariamente, ser leves, palatáveis; ao contrário, podem ser desconcertantes... ‘A Festa da Menina Morta’ é um filme desconcertante. Senão pelo incômodo da atmosfera rude e pela surpresa de sequências inusuais (‘escandalosas’, diriam alguns), ele desconcerta pela crueza de uma ficção de mãos estendidas à realidade – ou vice-versa, a depender do observador. E não só por isso é um bom filme. Matheus Nachtergaele (estreante diretor, roteirista e compositor) acerta no argumento e na direção; fotografia, direção de arte e elenco (Daniel de Oliveira excepcional!) são espetáculos à parte.
O elenco – boa parte desconhecida do grande público – não desempenha papéis, apenas; atrizes, atores e figurantes vivem fragmentos de vidas reais, personagens de carne-e-osso encontradiços no seio daquela cultura peculiar, a Amazônia ribeirinha. Deles efluem diálogos espontâneos, de uma sinceridade irrefletida. E aqui não me refiro a improvisos, mas a ousadias, mérito dos próprios atores e, não menos, do olhar atento e (suponho) flexível do diretor. Imagino-o apresentando aos atores não um script, mas um assunto a ser comentado, discutido, confabulado (especialmente em cena memorável, onde contracenam Dira Paes, Juliano Cazarré e o rio). Daí em diante, a interação e a liberdade de interpretação ditam o curso dos diálogos. O resultado é um fluxo de cenas saborosas, de naturalidade instintiva, plenamente harmonizada com a atmosfera rude do pano de fundo.
A história trata de crenças e culturas, de misturas e extremos; trata, sobretudo, de uma gente sofrida e maltratada pela vida, cuja única perspectiva, além da promessa do absurdo, é a própria alegria incoerente. Desperta o interesse a caricatura da crença ingênua, pela singeleza dos seus elementos, pelo inusitado de seus adereços, pela suposta tolice que encerra em si. Todavia, ao observador atento, o fenômeno é tão-somente uma porção do todo: o gênero humano, com suas próprias crenças impostas pela dor de existir – crendices simplórias, talvez, mas sublimes e elevadas sob o julgamento ingênuo do homem que crê.
Crendice popular de elevado sincretismo religioso, o culto da Menina Morta permeia e norteia a vida de uma comunidade esquecida nos confins da Amazônia, a subsistir premida entre o sagrado e o profano. O ritual reúne elementos multiculturais e multiétnicos ajuntados ao longo do tempo; e, tal qual a própria lenda que retrata, o filme parece ter se construído pela agregação de uma variedade de elementos ao longo de uma complexa gestação (presumo um doloroso parto). O produto final é uma obra de grande beleza estética e conceitual. Através das suas lentes não se percebe apenas a realidade áspera do povo ribeirinho, mas a realidade do mundo – se “o sertão é do tamanho do mundo” *, o rio também o é.
Se não pela beleza estética ‘A Festa...’ despertar o interesse, talvez o desperte pelas entrelinhas, como o que se apresenta sob a forma do embate entre os extremos que não suportamos, e entre os quais procuramos confortavelmente nos adequar. Como disse, é um filme de extremos. De outra perspectiva, derrama aos pés do público o caldo cultural produzido pela realidade de uma região colonizada, abandonada pelo poder e sob a injunção do mito, que precisa encontrar seu próprio caminho num amontoamento de experiências e idiossincrasias. O resultado é uma mistura estranha e incômoda para os olhos acostumados com os assim chamados ‘padrões’. Como disse, é um filme sobre misturas.
E como um emblema, parida pelo embate bruto entre sagrado e profano, rebenta a sentença proverbial e irrevogável – muito embora vaga, obscura. Aos devotos da menina, aquele povo servil que sofre e clama, a derradeira mensagem é ambígua, pois sobre esse povo não deixará de pesar a sombra do mito nem a necessidade da sobrevivência. E a mensagem é: Coragem! , pois “quem tem medo da dor, tem medo do dia e da noite...” **.
* João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’.
** O Santinho, n'A Festa da Menina Morta'.
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2 comentários:
Belíssima análise de um belíssimo filme.
A necessidade da crença para se seguir vivendo aquela (ou qualquer outra) realidade bruta fica patente quando se assiste A Festa da Menina Morta. E, se de um lado a ingenuidade impera, de outro, não se pode deixar de sentir uma compaixão enorme por aquela gente. Compaixão que permite até uma ternura por todo o ritual a que eles se submetem e através do qual conseguem a coragem necessária para enfrentar a aridez da existência.
Adorei. O filme e o texto.
Beijo.
Mariê, acho que o Nachter promete. Olho nele que ainda vem muita coisa boa por aí.
Obrigado, Preta, e um beijo.
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