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Manhã de segunda, acabo de chegar ao trabalho. Travo conversa com esse sujeito no hall do elevador – platitudes, banalidades sobre o fim-de-semana. Ali estamos em pleno exercício retórico, quando passa doutor Fulano-de-tal, figura distinta e influente, a transpirar autoridade de dentro do terno grave. Meu interlocutor – cujo nome tenho por bem omitir – até então solícito e atento às nossas trivialidades, à primeira vista da nobreza debanda em seu encalço sob efusivos brados de ‘bom dia, doutor Fulano-de-tal!’... Fico ali, com cara de ué, resto da frase muda na boca aberta – pois assim mesmo ele arremete na captura do saco do outro: no meio de uma frase minha. Bem-humorado – apesar da segunda-feira –, balanço a cabeça, dou de ombros e pego meu beco, mas não sem refletir sobre o episódio.
Talvez em defesa psicológica contra o descaso do colega, colho-me em conjeturas outras sobre o mesmo tema, ao que me ocorrem as seguintes questões: afinal, seria o puxa-saquismo um fenômeno genético, inato? E ainda: o termo “puxa-saco”, donde vem? – sim, pois certamente não significa, ipsis litteris, distender a bolsa escrotal de quem quer que seja, até mesmo porque há figuras do sexo feminino – naturalmente desprovidas de tal excrescência – objetos deste proceder.
Quanto à primeira questão, sou inclinado a reconhecer uma possível (quiçá provável) influência genética no comportamento bajulatório, o que poderia ser inclusive deveras vantajoso em termos evolutivos: o portador do traço gênico se poria sob mercês do incensado, figura a priori detentora de poder e ascendência, se de outra forma não seria alvo da bajulação. Todavia, a prática do puxa-saquismo também implica em desvantagens importantes, e aqui me transporto para os tempos da escola com o objetivo de ilustrar o presente corolário.
O aluno puxa-saco, aquele da primeira fila, diligente carregador de pastas e limpador de apagadores, o informante-dedo-duro-filho-da-puta, ah, como sofria esse infeliz! Até possuía algum privilégio entre os professores, mas, com os iguais... Cascudos, ponta-pés, segregação... Não tinha amigos, o desgraçado. E coitada da mãezinha dele!... Mas, a despeito da humilhação, gostava de ser puxa-saco. Olhinhos brilhavam ante um elogio qualquer, por mirrado que fosse – era a compensação, o reconhecimento pelo abnegado e inglório propósito de zelar pelo bem-estar do mestre.
Se por um lado alguma desvantagem do puxa-saquismo possa prejudicar a hipótese genético-evolutiva, por outro, reforça. Trata-se de impulso irresistível, como de resto o é qualquer contribuição gênica. A compulsão é tamanha, que só assim se explicaria a perseverança do puxa-saco, pois nenhuma vantagem que pudesse ter compensaria tal sofrimento. Além do que, sabidamente, não há ex-puxa-sacos – é pecha a ser arrastada para o resto da vida. O mesmo ocorre com os traços genéticos.
Quanto à questão semântica, bons dicionários não esclarecem a etimologia da palavra. Googlei, portanto. Eis o que encontrei. Segundo ‘A Casa da Mãe Joana’, livro de Reinaldo Pimenta que trata da origem de palavras e expressões, o termo vem da caserna: “puxa-sacos eram as ordenanças que, de modo submisso, carregavam os sacos de roupas dos oficiais em viagem”. Claro que, neste caso, a imposição não era genética, mas hierárquica - embora esteja eu fortemente inclinado a supor ter havido voluntários a se apressar solícitos e prestimosos ao cumprimento de tão nobre missão.
Se o puxa-saquismo é de fato genético, não se sabe, e sua faceta caricata pode até ser, sim, divertida. Mas, a despeito de descomprometida, não excede o propósito desta crônica lembrar o quão nocivas podem ser a hipocrisia dos aduladores e a subserviência dos lacaios do poder. Aí não há a menor graça. E sobre essa outra faceta, desprezível e abjeta, há urgência em aprender. E contra ela pelejar.
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2 comentários:
Adoro esse texto.
Odeio esses puxa-sacos e não sei quais são os piroes: os escancarados ou os dissimulados.
Beijo.
Mariê, os dissimulados são mais perigosos... Cuidado com eles!
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