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(Inspirado em Bagno, Marcos; A língua de Eulália. Contexto, 2008)
Além de eminente zoólogo, Paulo Vanzolini também foi um homem da música. A famosa (ou famigerada) Ronda e a bela Cuitelinho são obras suas – a primeira, letra e música; a segunda, canção recolhida por ele e Antônio Xandó do folclore mato-grossense. Eis a letra de Cuitelinho:
“Cheguei na beira do porto onde as onda se espaia
As garça dá meia volta e senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta que o botão de rosa caia, ai, ai
Ai quando eu vim da minha terra despedi da parentáia
Eu entrei no Mato Grosso dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução enfrentei fortes batáia, ai, ai
A tua saudade corta como aço de naváia
O coração fica aflito bate uma, a outra faia
E os óio se enche d'água que até a vista se atrapáia, ai...”
Bonitinha, mas ordinária?
Caipira demais?
Cheia de ‘erros’ de português?...
Não para a linguística.
Na postagem anterior, viu-se que o rotacismo – tendência de substituir por ‘R’ o ‘L’ dos encontros consonantais – é um fenômeno natural típico da evolução da língua falada, e que eventualmente firma-se na língua padrão. Agora, tomando por base a letra de Cuitelinho, dois outros fenômenos, também frutos da mutabilidade natural de uma língua, podem ser examinados.
E o primeiro deles é a supressão do plural. Vejamos, portanto, se há maior ou menor dificuldade para se compreender uma ou outra das formas abaixo:
a) “As garças dão meia volta, sentam na beira da praia”.
b) “As garça dá meia volta, senta na beira da praia”.
Ambas perfeitamente entendidas!
As duas construções transmitem a mesma mensagem, qual seja: mais de uma garça dá meia volta e senta na beira da praia. Todavia, a primeira forma, dita ‘correta’, é mais dispendiosa, tanto na linguagem escrita quanto na fala. Eis, portanto, outra tendência na evolução de uma língua: a economia! A tendência de se suprimir as chamadas marcas redundantes de plural é uma inclinação natural. Se o artigo, como primeiro termo da oração, está no plural, tem-se já um sinal bastante e suficiente de que os demais elementos também se referem à quantidade por ele definida, isto é, mais de um.
Deste modo ‘esquisito’ costumam falar os mineiros: “Ques coisa mais chata!” ou “Ques criança mais linda!”. Aqui temos não uma esquisitice, mas uma inovação! Mesmo sem o artigo, o mineiro já trata de flexionar o primeiro elemento da frase – no caso, o pronome que – de modo a economizar, mineiramente, as supérfluas marcas de plural no restante da construção.
Mas o leitor, ainda convencido de que tal discordância de número configure positivamente um ‘erro’ de português, pode argumentar que soa mal, ou que é coisa de ‘gente sem instrução’, ou ainda que denota preguiça, ou que é fenômeno típico do nosso meio rural... À luz da linguística, havemos que discordar de todos esses argumentos. Soar bem ou mal depende do hábito, da frequência que se emprega o termo; ‘gente sem instrução’ e a suposta ‘preguiça’ são argumentos carregados de preconceito; e quanto a ser um fenômeno típico, ou exclusivo de um grupo, vejamos os exemplos que se seguem:
“Your hot soft touch drive drives me crazy”e
"Your hot soft touches drive drives me crazy”.
Em português:
“Seu toque suave e sensual me leva a loucura” e
“Seus toques suaves e sensuais me levam a loucura”
(repare-se como a forma plural não é tão agradável).
Como são preguiçosos e caipiras esses ingleses, não?... Que nada! Eles são é econômicos: basta um único ‘S’ aposto ao substantivo touch e toda a idéia vai para o plural!
E outro exemplo, agora do francês:
“Je voux te donner la belle fleur jaune qui pousssait dans mon jardin” e
“Je voux te donner les belles fleurs jaunes qui pousssaient dans mon jardin”.
Em português:
“Quero te dar a bela flor amarela que crescia em meu jardim” e
“Quero te dar as belas flores amarelas que cresciam em meu jardim”.
(extraído de A língua de Eulália)
‘Ora’ – dirá o leitor – ‘mas no francês há muitas marcas de plural’. Certamente, mas apenas na escrita. O francês escreve as marcas de plural, mas nunca as pronuncia! A única diferença audível está no artigo – singular ‘la’, plural ‘les’ (pronuncia-se ‘lê’).
Está claro, portanto, que a tendência de suprimir o excesso de plurais não é um fenômeno pontual típico de um determinado grupo ou de uma determinada região. Tampouco é um erro. Trata-se de uma marca de evolução, que mais cedo ou mais tarde, quando a língua deixar de ser usada como instrumento de dominação e poder, poderá se consolidar na chamada norma padrão.
(O outro fenômeno lingüístico encontrado em Cuitelinho é a utilização da vogal ‘I’ no lugar de ‘LH’, como em espaia, em vez de espalha. Mas esse é um assunto para a próxima postagem).
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Publicado oridinalmente no Recanto das Letras em 29 de abril de 2009.
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Update:
Anônimo disse...
OK, but "Your hot soft touch drive me crazy" should be "Your hot soft touch drives me crazy" there's an "s" missing there
You're right. "Dives me crazy" is the correct form. Thanks.
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Publicado oridinalmente no Recanto das Letras em 29 de abril de 2009.
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Update:
Anônimo disse...
OK, but "Your hot soft touch drive me crazy" should be "Your hot soft touch drives me crazy" there's an "s" missing there
You're right. "Dives me crazy" is the correct form. Thanks.
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5 comentários:
Cuitelinho foi a única música que aprendi a tocar no violão. Sempre adorei.
♥
Clap! Clap! Clap! Ótimo texto!
Tive um professor de Linguística - o saudoso Samuel Moreira - que falava com frequência desses "plurais redundantes" (e, na condição de mineiro orgulhoso, agradeço por mencionar a nossa "inovação" no uso da língua - o pronome que "pluralizado" - bastante comum por aqui e falado por ricos e pobres, escolarizados e analfabetos).
Só mesmo a Linguística para conseguir desmontar ideias preconceituosas e dogmatismos no campo da linguagem...
Um abraço.
Uau Marcelo,
cada dia tu estás mais e mais arrasando. Fico ::))..... contigo.
Parabéns... Tu és SENSACIONAL, LINDO, TUDO DE BOM, MARAVILHOSO!!!
PARABÉNS!
Não me procure para me achar, procure-me para se perder comigo!!!
Preta, toca pra mim, qualquer dia desses?...
Obrigado, Halem. E quanto ao papel transformador da linguística moderna, dê uma espiada nos textos do Marcos Bagno (colunista da Caros Amigos e linguista de vanguarda). Se vc ainda não o leu, vale a pena. Abraço.
Anônimo, obrigado.
OK, but "Your hot soft touch drive me crazy" should be "Your hot soft touch drives me crazy" there's an "s" missing there.
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