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A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada...
(Manuel Bandeira, Libertinagem, Evocação do Recife, 1925)
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Cuidado! Referir-se como “erro” (aspeado), de um modo lacônico e sentencioso, a aspectos do português-não-padrão pode ser um tremendo erro (sem aspas)! Por exemplo: boa parte daquilo a que se costuma atribuir o rótulo de “erro” não é mais que uma herança, um vestígio de outras épocas – este é, precisamente, o caso dos assim chamados arcaísmos, o tema deste ensaio.
Arcaísmo: substantivo masculino. 1. Rubrica: linguística. Palavra, expressão, construção sintática ou acepção que deixou de ser usada na norma atual de uma língua [Em linguagens especiais, é comum a sobrevivência de algumas formas arcaicas (p.ex., na linguagem forense, na linguagem regional, entre locutores de idade avançada etc.); também podem ser utilizadas como recurso para recriar a atmosfera de uma época (p.ex., no romance histórico)]. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa; destaques meus)
Perceba-se que a definição do léxico sequer se avizinha de uma qualificação do fenômeno como “erro”; ao contrário, transige na sobrevivência do arcaísmo, quer como característica de linguagens especiais, quer como recurso literário.
Na linguagem regional brasileira, de norte a sul, e como bem assinalou o mestre Houaiss na sua primeira acepção do termo, é comum a incidência de arcaísmos. A razão da permanência destes traços antigos, sobretudo na fala regional, remonta à colonização. As marcas linguísticas do colonizador português que aqui aportou no século XVI são, curiosamente, mais parecidas com o falar ‘brasileiro’ atual que propriamente com o português hoje falado em Portugal – trocando em miúdos, o modo de falar de Cabral e Caminha era mais parecido com o do nosso falador comum do que com o do ‘seu’ Manuel, o português da padaria. Lá, na Corte, no último meio milênio, a língua experimentou um ritmo maior de modificações; aqui, na Colônia, manteve-se intacta por mais tempo. Por aqui, apenas no século XIX intentou-se abandonar esses aspectos antigos do português herdado dos primeiros colonizadores, numa cruzada a qual Manuel Bandeira, com ironia e autocrítica, iria se referir mais tarde como “macaquear a sintaxe lusíada”. No português-padrão, sob a batuta dos gramáticos e dos acadêmicos, alcançou-se o tal intento. Mas muitos aspectos arcaicos se conservaram nas variedades do português-não-padrão, especialmente nos regionalismos, porque a língua do povo simples, interiorano, é mais arcaizante que nas grandes cidades (pelas mesmas razões que foi mais arcaizante na Colônia do que na Corte). E conservaram-se, também, na literatura, notadamente após o movimento Modernista, pois assim pretendia a revolução estética e ideológica daquela corrente literária (vide a obra de Manuel Bandeira, Guimarães Rosa, Drummond, Mário e Oswald de Andrade, e tantos outros).
Um dos exemplos mais comuns de arcaísmos nas variedades do português-não-padrão são aqueles verbos que a fala regional ‘insiste’ em apor (e reserve este verbo) a letra ‘a’ no começo: "alembrar", "arreparar", "arrodear", "avoar" etc. O que se tem aqui é uma herança do latim – ele, outra vez. Ocorre que a preposição latina ‘ad’ era utilizada, naquela língua, para formar novos verbos, dada sua vasta gama semântica: “perto de”, “junto a”, “até” etc. Daí, de ad + prendere, surgiu nosso “aprender”; de ad + correre, o “acorrer”; de ad + fluere, o “afluir”; e de ad + ponere, o nosso “apor” (que reservamos ali acima). E a lista de exemplos é vasta; tão vasta quanto foi, durante muito tempo, no português de Portugal. A retirada do ‘a’, irmão mais novo do ‘ad’ latino, dos verbos no português padrão d’além mar, representou uma tentativa dos filólogos portugueses de definir uma língua oficial, mais pura, mais culta, literária... O problema é que, como sói acontecer com as mudanças artificiais, impostas a partir da iniciativa de um grupo seleto e pouco representativo, esta tentativa não ‘colou’ de imediato no meio popular – afinal, naquela época, o povo mal sabia ler ou escrever. O tempo passou, e mesmo o falador comum lusitano, sob a pressão da gramática, acabou por agregar à sua fala as mudanças pretendidas. Ocorre que, quanto mais distante do local de origem, mais arcaísmos há na língua – e é este o nosso caso, como Colônia que fomos; e é o caso do linguajar do interior, cujo ritmo de mudança é mais lento que nas grandes cidades.
Além do fenômeno ‘a’ iniciando verbos, existem muitos outros arcaísmos mantidos no português-não-padrão, seja no vocabulário, seja na sintaxe. De arcaísmos no vocabulário, temos, por exemplos: o “entonces”, do latim entonce; o “despois”, de de ex post; o “escuitar”, de ascultare. Na sintaxe, o uso da preposição "de" regendo o verbo chamar: “Ele me chamou de ignorante”, enquanto a norma clássica ordena: “Ele chamou-me ignorante” – o que retumba no ouvido interno, no mínimo, afetado.
Outro: o nosso uso tão comum do gerúndio em construções do tipo estou escrevendo, estou falando, estou indo é, para os portugueses, um brasileirismo, pois lá se diz estou a escrever, a falar, a ir... Mas isso é lá, ora, pois! E lá, antigamente, falava-se e escrevia-se como aqui, agora – Camões (ele de novo, nada menos que o fundador do português literário) usa, o tempo todo, o nosso eficaz, o nosso natural, o nosso gostoso de se falar, o nosso gerúndio... E se é um arcaísmo, que o seja! Causa espécie, portanto – ou asco mesmo, para ser menos pretensioso –, ouvir de figuras públicas que se arvoram cultas e letradas a ostentação de construções como “estou a prejulgar", ou "estou a falar com a imprensa”, ou ainda “estou a conceder habeas corpus aos amigos”, ou mais “estou a chamar as falas o Presidente da República”, e por aí foi... Longe de trescalarem cultura, ou de representarem um presumido domínio da própria língua, estas são – e falo do modo mais elegante possível – claras manifestações de puro pernosticismo.
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Ultima e importante observação: uma coisa é o uso natural do gerúndio – que sempre existiu na língua portuguesa –; outra coisa é aquele recente fenômeno que causa estranheza, quando não repulsa, aos ouvidos mais sensíveis: o tal “gerundismo” (entre aspas por causa do uso inadequado do próprio termo). Neste caso, o problema não é o gerúndio, mas o uso de vários verbos auxiliares encadeados. Em "o senhor pode estar aguardando na linha" ou "eu vou estar falando com o supervisor", há um acúmulo de auxiliares, quando, segundo alguns, bastaria dizer "o senhor pode aguardar" ou "eu vou falar".
Sobre este fenômeno, e antes de condená-lo, lacônicos e sentenciosos, saibamos mais aqui.
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Marcello, não só comportamento pernóstico, mas também um modo de "guardar distância" do "populacho", que, na visão deste tipo de falante da língua, nem sabe se expressar direito...
ResponderExcluirP.S. Eu nunca uso o verbo "chamar" com a regência "culta" demonstrada por você na exemplificação acima, nem mesmo em textos formais. Soaria completamente artificial, na minha avaliação. Realmente, retumba no ouvido interno.
Um abraço.
O que alimenta todo esse rígido regramento é aquela eterna vontade de diferenciar as pessoas em "cultas" e "ignorantes". Necessidade do 'cerumano' de ser melhor que o outro.
ResponderExcluirÓtimo texto, Preto.
♥
Halem, de acordo. E o tal "chamaram-me" não é nada espontâneo - ao contrário, soa mesmo muito artificial, se não pretensioso. Abraço.
ResponderExcluirCoisas do 'cerumano', Preta, que não consegue ser ele mesmo sem se medir com o outro... De preferência, de cima pra baixo. ♥