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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O solo do oboé

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A condição humana, feminina ou masculina, é a condição da fragilidade. Cultua-se, todavia, a fortaleza, em detrimento da angústia, da impotência, e dela mesma: a fragilidade.

Desprezada, renegada, maltratada – a despeito de ser irrefutável – a fragilidade é ignorada pela história. A história exalta o herói, presumidamente imune à ela. Porque a história é escrita por homens (do sexo masculino) e sobre homens (idem), cuja armadura é a máscara da coragem e da bravura.

Ela, a história, é parida pela violência, e ao vencedor não se pode reputar o frágil ou o sensível, mas o forte e o viril. A fragilidade – repita-se: uma condição humana, feminina e masculina – é incompatível com a virilidade exigida ao homem, esse “destemido”. Incompatibilidade que, cultural e historicamente, diferencia homens de meninos... e aparta homens de mulheres – malgrado a imanente e (para este homem histórico e cultural) misteriosa força feminina.

Superveniente, fragilidade gera medo e dor, sentimentos dos quais o “homem-forte” não se permite padecer... Mas padece. A este homem não se permite confessar a própria fraqueza. Sequer lhe é permitido chorar. A ele não se concede a lágrima do corpo (da dor per se). Dele não se tolera a lágrima não chorada. O choro contido resta, portanto, recolhê-lo ao domínio da expressão artística, no limiar entre o racional-consciente e a experiência sensível. Ali, neste limiar, está a confissão de que a vida não basta. Pois ao homem, mesmo o supostamente “forte”, é insuportável o sofrimento de ser...

E o homo fragilis – este que padece, sim senhor, do medo e da dor – retrai-se ao universo artístico. Ele se procura na expressão poética. Ele é o romântico do século XIX, como o jovem Werther e seu séquito. No pós-realista século XX, simbolista e moderno, niilista e existencial, ele é a derrota. A derrota é o personagem, sob as formas do quixotesco Vitorino e do sensível Philip, do absurdo Meursault e do rude Fabiano (mesmo que o herói de Vidas Secas possa ser seja antes de tudo um forte, nesta realidade ele pertence à contingência do homem... e o homem é, antes de tudo, um fraco).

Eis a derrota da suposta fortaleza, exigida e almejada. A impotência aflora sem pudores. O homem frágil quer se expor. A literatura, seja pelo fato poético, seja pela travessia da prosa, é a metáfora da virilidade perdida, é a admissão dessa condição humana (e de resto masculina): a dimensão da fragilidade. A força lírica e criativa rebenta da fragilidade, na medida em que o homem “se sabe” e se deixa saber na sua fraqueza, sem receios.

Assim que Joyces e Kafkas, Augustos e Pessoas, Caios e Franciscos, se permitem expor às vísceras do devir, na dimensão da realidade grávida prestes a parir... Tudo acaba bem?... A parição é bem sucedida?... Não. Naturalmente, não. Dor e sofrimento costumam rebentar...

Resta, portanto, o lenitivo da arte. Resta a cura pela expressão. Não a cura dos prozacs, ou do consumo de tralhas inúteis, mas a cura pela via da liberdade... Uma cura possível, pela libertação do em si positivista, pelo afastamento que permite observar-se de certa distância, livre de dogmas, livre de conceitos e rótulos, livre de exigências e amarras... ( e aqui não há o que fazer senão deixar um desconcertante et cetera).

E de mãos dadas com a fragilidade está essa liberdade. Essa liberdade reveladora, extática, e dual: às vezes um lenitivo, outras vezes um recrudescer do sofrimento… Assim como ressoa, viajando pelo espaço e pelo tempo, um efêmero solo de oboé: às vezes belo, às vezes doído, mas sempre necessário...
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4 comentários:

  1. Aceitar essa fragilidade como natural e se permitir expressá-la é libertador, Preto. Sempre. Embora não se diga que liberdade seja sinônimo de felicidade.
    Belo texto.

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  2. Pois é, Preta, não acho que seja sinônimo de felicidade. Aliás, pode ser até o contrário...
    Mas é liberdade, e eu opto por ela (pelo menos no campo da expressão).
    Bj

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  3. Concordo com a Mariê, belo texto.
    levei
    abraço

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