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Na última postagem, implode a tentativa dos pensadores cristãos de conciliar, sob os seus próprios artifícios, razão e fé .
Toma o seu lugar, depois de obscuro milênio, o doloroso reflorescimento da razão.
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O Renascimento da Razão
Passados três séculos desde a supremacia – e subsequente ocaso – da Escolástica Medieval, durante os quais transcorreria um denso e prolífico período de reflorescimento da cultura e das artes ocidentais (o Renascimento), e sob forte influência deste mesmo período, irrompe no cenário do pensamento europeu, sobretudo na França, o Racionalismo Cartesiano.
Mais que uma doutrina contrária às manifestações místicas e dogmáticas da religião, o Racionalismo se opõe até mesmo às expressões dos sentimentos e das emoções no domínio do saber, muito embora reconheça na intuição o conhecimento direto e imediato, isto é, o fundamento primeiro para a ‘dedução’, que será o artifício a nortear esta escola filosófica.
Por oposição ao nascente Empirismo, os racionalistas atribuem à Razão independente da experiência sensível – a priori, portanto – a única autoridade na busca do conhecimento. Mas não se opõem – também a priori – à ideia da existência de deus. Se para deus não há lugar no racionalismo, para o racionalista cartesiano ele pode até existir. Mas existe de modo transcendente, para além da necessária concepção racional e mecanicista da natureza. Deste modo, o racionalista cartesiano se opõe ao ceticismo e à dúvida cética, que é real e positiva (a dúvida cartesiana, como se verá, é fictícia).
O século do racionalismo é um tempo em ebulição. A Europa já atingira a Alta Renascença, a imprensa de Gutenberg é já secular. Lutero lançara as bases da Reforma e a Igreja contra-ataca; católicos e protestantes se dividem em embates sangrentos. Copérnico já fizera, um século antes, sua revolução heliocêntrica, mas Galileu desafia ainda a autoridade da Igreja (Giordano Bruno já queimara no fogo da inquisição). Michel de Montaigne apregoa seu ceticismo e a França, sob o longo reinado de Luis XIV, entrevê os anúncios da grande Revolução Liberal.
É neste cenário que se consolida o Racionalismo Francês. René Descartes é seu maior expoente, e a despeito da defesa veemente da razão, é um crente sincero...
Eu venerava nossa teologia, e pretendia, tanto quanto qualquer outro, ganhar o céu; mas, tendo aprendido, como coisa muito certa, que o caminho não é menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que a ele conduzem, estão acima da nossa inteligência, não teria ousado submetê-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender examiná-las e ser bem-sucedido, era necessário ter alguma assistência extraordinária no céu, e ser mais que um homem.
(O discurso do método)
Para Descartes o homem é, essencialmente, um ‘animal racional’ – para além do ‘animal político’ de Aristóteles – donde ‘razão’ e ‘bom-senso’ lhe são inerentes; intrinsecamente inerentes, com o perdão do pleonasmo. Contudo, este mesmo homem dotado de uma mesma razão inata, não é capaz de bem conduzi-la na sua busca pelo conhecimento. Eis aí a necessidade de uma ordem, ou de um ‘método certo, simples e universal’ que aponte o caminho para o verdadeiro saber, o qual advirá das intuições inatas mais simples e fundamentais, ou seja, do conhecimento ‘a priori’. Destarte, compõem o ‘método cartesiano’ tanto a ‘intuição’, que é inerente ao ser, quanto a ‘dedução’, que daquela advém, porquanto resulte dos princípios verdadeiros e apriorísticos irrefutavelmente reconhecidos.
Ainda segundo o filósofo francês, tudo o que não possa ser objeto da dúvida metódica (diferente da dúvida cética, que não acredita na possibilidade de se atingir a Verdade de coisa alguma) deve ser rejeitado; ao passo que devem ser aceitas as coisas indubitáveis, as quais se impõem com absoluta certeza como as ‘Verdades Primeiras’ atingidas pela via da dúvida metódica, voluntária, sistemática e, sobretudo, provisória.
‘Cogito, ergo sum’, e se penso e existo, duvido. Eis a primeira Verdade, a qual emerge após se duvidar de tudo, e advém da rejeição ao que não se pode duvidar.
‘Algum deus deve existir’, poderia ser a segunda Verdade. Se a primeira certeza afirma ‘eu penso’, ao pensamento vincula-se a idéia de alma, vinculada por sua vez à idéia de ‘Eu’. O primado do espírito e a sua distinção do corpo – tese do dualismo cartesiano – importam em admitir a existência de um deus com base em dois argumentos: o ontológico, que impõe à razão tal existência; e o contingente, que assume que, se, por definição, o Ser Perfeito é aquele que possui todas as perfeições, e se a própria existência é uma perfeição, logo, o Ser Perfeito existe.
Ainda sob o ponto de vista do dualismo cartesiano, a natureza material não possui, por si só, profundidade e finalidade: ela simplesmente existe, e existe sob a constante e perpétua ‘criação’ do Ser Perfeito. Nós, partícipes dessa mesma natureza material, embora a percebamos na sua dimensão da ‘extensão’, não possuímos elementos para percebê-la na sua ‘essência’, do mesmo modo que também não percebemos a nossa própria essência. De sorte que, se o homem concreto não se identifica com a sua própria alma, há que transcendê-la, a ela e a um certo deus, para que possa assim elaborar, pela reflexão metódica, uma concepção puramente racional e mecânica da natureza.
Portanto (ou todavia, a escolha é sua, leitor), pela via do método certo e universal, o Racionalismo Cartesiano procura chegar ao conhecimento de todas as coisas transcendendo a realidade da existência de um deus, ou independente dela, segundo um modelo puramente mecanicista. Para tal, há que se ter em mente a primazia da razão, pois se a ‘Árvore do Conhecimento’ – que é a própria Filosofia – possui a Metafísica como raízes, a Física como tronco, e os ramos como as demais ciências, a sua seiva é a Razão. A mesma Razão que permite ao homem explorar a natureza tão-somente despojada de finalidade, desprovida do componente divino, apesar de levado a assumir que a sua essência pertença a esse suposto 'criador'. O homem compreenderia a natureza das coisas apenas por seu atributo de ‘extensão’, ao qual se reduzem matéria, corpo e a própria vida, pois somente assim, reduzidos, podem se submeter à autoridade da Razão.
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Uma pausa, para respirar, na série fé X razão. No próximo post, poesia (e poesia internética, sim, por que não?...). A série volta depois desse respiro.
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2 comentários:
eu acho que o maior pecado dos racionalistas foi rebaixar a emoção e considerá-la como a parte "bestial" do homem; e os romantistas fariam depois o oposto, sobreelevando a emoção.
eu gosto destes teus posts sobre a história do pensamento, aliás sigo o blog exactamente por isso.
Obrigado, Pentacúspide, vc e seus comentários são sempre bem-vindos.
Em breve (depois que vencer a inércia) continuo esta série.
Abç.
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