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quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Rotacismo - ele gruda feito 'chicrete'

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‘Pranta’, ‘grobo’, ‘frauta’ e ‘probrema’: erros elementares de ortografia na nossa língua portuguesa, certo?
Você concorda?...
Sem pestanejar?...
Pois discordaria se examinasse os tais ‘erros’ à luz da moderna sociolinguística.

Há uma importante corrente de linguistas brasileiros que não concorda com o rótulo de ‘erro’ aposto de modo definitivo e peremptório ao jeito de falar do povo comum, dito iletrado. A esta ‘língua errada’, típica das classes sociais cujo acesso à educação formal é limitado, a linguística moderna chama de ‘português não-padrão’, por oposição ao português-padrão ensinado nas escolas e encontrado nas gramáticas e dicionários. Jamais lhe reputam o estigma do erro; consideram-na, tão somente, ‘uma outra maneira de falar’.

Longe de ser risível, ou absurdo, ou fruto da ignorância do povo, o ‘português não-padrão’ possui a sua própria lógica linguística, solidamente fundamentada na evolução natural da língua através dos tempos. A este fenômeno em particular, da troca do ‘L’ pelo ‘R’ nos encontros consonantais, dá-se o nome de rotacismo. E o rotacismo não é um erro. É, ao contrário, uma tendência natural na evolução das chamadas línguas românicas, aquelas cujo tronco é o latim (especificamente, o latim vulgar). Reputar o fenômeno com a pecha de ‘erro absurdo fruto da ignorância’, ou pior, de ‘burrice’ do eventual falador, significa desconhecer a evolução natural da língua, o que redunda em manifesto preconceito, se postulado sem razão de causa.

Senão, vejamos os exemplos: igreja, Brás, praia, escravo e frouxo. Comparemos, agora, cada uma dessas palavras com a sua original latina e com as correspondentes de outras línguas latinas (clique para ampliar):

Pois bem, havia um ‘L’ no latim, que se conservou no francês e no espanhol (castelhano), mas que acabou por se converter num ‘ridículo’ ‘R’ no português... Ridículo? Mas não há nada de ridículo em igreja, ou Brás, ou praia! Então, por que haveria de se ter algo risível, ou condenável, em frecha, pranta ou frauta?... ‘Ah, porque é feio!’, ou ainda, ‘simplesmente porque está errado!’, diria o raro leitor... Bem, neste caso, resta a mim me socorrer nalguns versos d’Os Lusíadas, obra prima daquele que é considerado o maior poeta – senão ‘inventor’ – do português literário.

Com vocês, Luís de Camões:

“E não de agreste avena, ou frauta ruda” (canto I, verso 5)
“...pruma no gorro, um pouco inclinada” (canto II, verso 98)
"Era este ingrês potente, e militava” (canto VI, verso 47)
“Onde o profeta jaz, que a lei pubrica (canto VII, verso 34)
“Doenças, frechas, e trovões ardentes” (canto X, verso 46)
“Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta (canto X, verso 136)
(idem, ibidem)

Coitado... Como era ignorante este tal de Camões!...
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(publicado originalmente no Reacanto das Letras, em 27 de abril de 2009)

10 comentários:

  1. Olá Marcelo, ótimo texto! Escrevi algo lá no meu 'brog', mas fui mais tímida - falei sobre 'erros' mais aceitáveis, digamos assim. Confesso que me dói um pouco ouvir certas palavras, como por ex. uma amiga chamada 'Creusa' (pq o escrevente a registrou como o pai falou: Creusa, ora bolas).
    Tenho outros exemplos no texto, que foi inspirado no poema "Vício na fala" de Oswald De Andrade.

    Mas essa coisa de controlar até a forma como se fala(para não dizer, o quê se fala) e delimitar 'quem' fala certo e 'quem' fala errado, só serve para manter o 'puder' de quem o detém, né?

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  2. Pois é, AnaCris, concordo que agride um pouco os ouvidos certos 'formas' de pronúncia; todavia, o academicismo e o exclusivismo da norma culta como forma de domínio social devem ser combatidos.
    Na próxima postagem falo um pouco mais sobre isso, agora focando o problema da redundância do plural (meio polêmico, esse tópico).
    E vou já dar uma conferida no seu 'brog'.
    Um abraço e obrigado pelo comentário.

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  3. Marcelo, boa exposição. E há outra coisinha ainda: quem é socializado desde criancinha numa comunidade de falantes, na qual palavras como "craro", "prano" e "grobo" são utilizadas com frequência, inevitavelmente também as empregará.

    E deixo um questionamento:

    O chamado português padrão não é, no fundo, uma grande abstração, do ponto de vista científico? Não existe um corpus consolidado de dados e ocorrências linguísticas (algo praticamente impossível de se obter) para postulá-lo, nem um modelo inequívoco de escrita (os escritores "clássicos" eram também artistas; logo, adoravam desviar da "norma")

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  4. Muito bom texto.
    Linguagem é vida, gramáticas à parte!

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  5. Halem, seu questionamento é absolutamente pertinente. Um termo que bem define as normas de uma língua-padrão poderia ser "convenção" - e como toda convenção, ela existe para ser subvertida. Um abraço.

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  6. Camila, e como tudo o que é vivo, é mutável. Abraço.

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  7. Gostei muito do seu texto, parabéns!
    Muito do que você fala estudei na disciplina Língua Latina no curso de Letras, mas pra quem nunca estudou sobre isso é bastante esclarecedor!

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  8. Obrigado, Maria. Há outros ensaios desta série que talvez você goste. Procure na tag "linguística". Abraço.

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  9. Olá Marcello! Sou estudante de Letras e farei meu trabalho monográfico sobre o rotacismo. Gostaria de saber se vc pode me indicar alguns livros que tratam do assunto?
    Adorei ter conhecido seu blog.

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  10. PL, indico o livro que inspira esta e as demais postagens do blog sobre linguística: A língua de Eulália, do professor Marcos Bagno.

    Obrigado e volte sempre.

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