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“Aquilo que os escritores pertencentes à nobreza recebem ‘gratuitamente’, por direito de nascença, os homens do povo têm de comprar ao preço da sua juventude. Experimente, pois, escrever a história de um jovem, filho de servo, antigo caixeiro de venda, cantor de igreja, ginasiano e, depois, universitário; treinado a curvar a espinha e a beijar a mão dos padres; submetido às idéias de outrem; grato por todo pedaço de pão; cem vezes espancado; correndo miseravelmente calçado, a dar algumas aulas particulares; brigão; gostando de torturar os animais; aceitando agradecido os almoços dos parentes ricos; hipócrita perante Deus e perante os homens, sem qualquer necessidade, simplesmente por consciência da própria nulidade. Relate, ainda, como este jovem tenta libertar-se, gota a gota, do escravo que nele existe, e como, acordando em um belo dia, ele se dá conta de que não é mais um sangue escravo que lhe corre nas veias, mas o sangue de um ser humano”.
Assim, em carta datada de 1889, aos vinte e nove anos de idade, Anton Tchékhov descreveria o seu doloroso despertar de consciência.
Filho de um pequeno comerciante de aldeia e neto de servos da servidão russa (o sistema de semi-escravidão do Kreopostnoje Pravo) Tchékhov passaria a infância sob o despotismo de um pai autoritário e violento (“cem vezes surrado”); e a juventude, sob as vicissitudes de uma árdua luta para se formar em medicina – que pouco exerceria – ao mesmo tempo em que sustentava a família arruinada. Seguiria-se a vida de um homem extremamente preocupado com os problemas sociais da sua Rússia czarista, mas completamente desconfiado de qualquer sistema ou doutrina, fosse no campo sociológico, no literário, no filosófico ou no religioso.
Homem de paradoxos, acha-se nos seus contos e novelas uma indelével nostalgia pelas coisas religiosas e uma marcante concepção espiritualista, muito embora se confessasse materialista convicto.
“Sou um racionalista que, pobre pecador, ainda ama o repicar dos sinos”.
Cético e apaixonado, materialista e sonhador, tímido e perspicaz; homem objetivo, mas subjetivamente atormentado pelos grandes problemas sociais do seu tempo – e pelos grandes problemas morais de todos os tempos. Tchékhov repudiava qualquer tendência meramente contemplativa; repudiava a contemplação imanente à passividade ante a religião, e repudiava o próprio ceticismo inerte, igualmente contemplativo. Era um homem de ação. Referia-se com severidade e, ao mesmo tempo, com serenidade, à “multidão tola” (veja Condorcet), aquela massa obediente à coerção do coletivo e do poder, pois a sabia constituída de seres humanos. Seres humanos que, na sua visão, merecem receber o carinho paternal do artista, o responsável por sacudir-lhes os ombros à compreensão daquilo que lhes aparece diante dos olhos fechados. O destino da “multidão tola” era sua constante preocupação.
Por essa via árdua e sinuosa, o criador de grandiosos contos e novelas – que embora embebidos da simplicidade rural das suas gentes e dos seus lugares, são também marcados pelo engajamento e pela introspecção – tem hoje o nome inscrito entre os maiores. Coloca-se, portanto, ombro-a-ombro aos expoentes da literatura russa do século XIX, como nas palavras de Sophie Laffitte (veja mais aqui), que condensam os feitos e as faces daqueles mestres:
“Exteriormente, falta a Tchékhov o pitoresco. A literatura russa do século XIX apresenta uma galeria de tipos prodigiosos. Griboiedov, de vida curta e aventurosa; Púshkin, de sangue africano, genial e turbulento; Liérmontov, herói romântico, de semblante e existência trágicos; Gogol, o mais enigmático dos seres, dilacerado por contraditórias paixões e imergindo cedo na loucura religiosa; Dostoievski, vivendo todas as tragédias, grande como um profeta da Bíblia; Tolstoi, artista imenso. E Ostróvski, e Lieskóv, e Apolón Grigoriev, e Constantin Leóntiev!
Ao lado deles, Tchékhov! Um homem magro, ligeiramente curvado. Um rosto tranqüilo de olhos penetrantes, disfarçados por um lorgnon de aro dourado. Cabelos castanhos, muito finos, uma ligeira barba em ponta, uma expressão serena e concentrada. Traje correto, um tanto fora de moda. O ar de um intelectual russo médio. Tal é, exteriormente, Tchékhov. Mas a sua vida, que é igualmente tão pouco espetacular, tem a simplicidade, o rigor concentrado de uma tragédia. A tragédia da doença, da solidão e do gênio”.
(‘Tchekhov’, Sophie Laffitte; José Olympio, 1993)
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4 comentários:
Mais um autor para a minha lista "quero ler".
Pelo que você diz no texto, vou gostar bastante.
♥
Vai gostar sim, Preta, tanto da obra quanto da história dessa figura trágica e genial. Beijo.
Marcello, devo dizer que não tinha nem a vaga ideia de toda a complexidade e força da obra e da vida desse escritor.
Leitor eventual, fico admirado (e grato) por esse texto primoroso sobre Tchekhov.
Vou fazer uma chamada lá no Sinistras. Um abraço.
Halem, muito obrigado pela chamada lá no 'Sinistras Bibliotecas' - você sabe o que diz, de modo que seu reconhecimento é importante.
Quanto ao Tchekhov, sua obra é genial; e sua vida, uma história trágica: privação, adversidades, engajamento social, doença, solidão, mas - e sobretudo - paixão e genialidade.
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