quinta-feira, 14 de abril de 2011

Uma pequena joia

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Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.

José Saramago, O conto da ilha esquecida, p. 32 (*)

Gostar de Saramago, eu sempre gostei – ‘sempre’, a saber: desde que li Ensaio Sobre a Cegueira, primeira vez que me dispus a penetrar nesse novo, e a princípio enigmático, universo literário. Mas meu autor preferido continuava sendo García Márquez, como sempre fora desde a memorável leitura de Cem Anos de Solidão, lá pelos idos da baixa adolescência.

Acontece que me cai às mãos uma pequena joia, livreto de leves e palatáveis sessenta e poucas páginas, impressas com tipos grandes em papel Couché, mas com a mesma ironia, com a mesma visão ácida e peculiar do vivente a procurar viver sua única vivência no seu único possível mundo. Elementos típicos de José Saramago. Comprei para o meu filho de quatorze anos, trabalho escolar, ele leu e achou esquisito – óbvio (daqui a pouco ele vai fluir, e fruir, certamente). Chegamos a trocar impressões, eu falando do meu gosto pelo autor, ele falando da esquisitice que aquela fábula lhe pareceu.

Pois bem, García Márquez me perdoe, mas a fila andou.

Com esta pequena joia Saramago me abduziu definitivamente. Senão, vejamos o diálogo entre o aventureiro e a faxineira do rei, lá pela página quarenta (lembrem-se da ausência dos verbos dicendi e da economia de pontuação com a qual Saramago trata, como quem trata a própria amada, a sua querida língua portuguesa):

Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és, O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa. (grifos meus)

Li numa sentada. Posso dizer, exato e empírico, que me demorou cerveja e meia. Todo o conto é uma exortação, quase uma advertência. Uma exortação lírica ao inconformismo, uma advertência poética para que se persiga o sonho (ou desejo, ou propósito, ou vontade...), mesmo o supostamente impossível, e apesar das adversidades, enquanto é tempo. Eu me senti pouco menos que o discípulo de um velho e sábio mestre.

O final, como todos os finais de Saramago, deixa um nó na garganta e te abandona numa dessas esquinas da comoção... Mas, do final não direi mais, dele você lerá. Claro, se estiver disposto a enfrentar o rei e a sair em busca da sua ilha desconhecida...

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(*) O Projeto Releituras disponibiliza a íntegra de O Conto da Ilha Desconhecida. Entretanto, recomendo a última reimpressão, muito atraente (apesar do preço), da Companhia das Letras, ilustrada com as belas aquarelas de Arthur Luiz Piza.
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5 comentários:

Mariê disse...

Amei seu ensaio.

Saramago é um espetáculo. Sou fã confessa e de carteirinha.

Esse conto... ah! esse conto é puro Saramago, pura delícia.

Marcello disse...

Preta, acho que foi o melhor que já li de Saramago.
Claro que, como é o mais recente, o gosto ainda está nas "pupilas gustativas"... E é muito saboroso.

Bj, ♥

Denise disse...

Marcello, olha só esse vídeo. Saramago é uma figuraça!

http://www.youtube.com/watch?v=QuHARSJW9Ys&feature=related

Denise disse...

Eu sei que coloquei no presente (é), mas é porque não sei muito bem ficar o tempo todo distinguindo os verbos de acordo com permanência/ausência no mundo. ahahahahah Acho que tenho sérios problemas para tudo! Abraço!

Marcello disse...

Denise, vc está com toda razão: Saramago "É", porque com "Saramago" não nos referimos apenas à existência que se foi, mas ao seu legado, sua obra que está mais viva do que nunca.
Abraço.