terça-feira, 5 de abril de 2011

Crônica do Nada

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I

Primeira luz da manhã de domingo, ele sai de casa com destino certo. Camisa puída, gravata ordinária estampada, terno azul-marinho muito folgado, mas bem passado, sapato preto surrado, mas bem engraxado. Bíblia enorme debaixo do braço. Seu itinerário passa pelos restos da noite. Ele evita os botequins nas últimas vascas, os bêbados trôpegos discutindo com voz embolada, as prostitutas tardias entorpecidas pelas horas de labor infrutífero, maquiagem vencida, ares de um matisse...

Impassível, ele segue em frente. Forças sobrenaturais, ele crê, conspiram nesta manhã – como em tantas outras – para que se mantenha firme no inequívoco propósito de ir adorar o seu deus.

Mas a figura mal-ajambrada chama atenção. Os remanescentes da madrugada boêmia escarnecem e gracejam do inconfundível estereótipo do crente de terno em desalinho e catatau de bíblia sob o braço. Ele não se perturba. Ao contrário, empertiga-se. E os perdoa, ele próprio outrora um “perdido”, por isso mesmo sabedor dos descaminhos do submundo, ciente que aquelas almas sucumbem às legiões e aos potentados do “inimigo”.

Enquanto caminha, passo firme e resoluto, recorda outros tempos. Não há nostalgia nas suas lembranças. Há a satisfação de saber que aqueles são tempos passados...

II

Filho de berço católico, batizado, crismado e comungado, ele se distanciaria pouco a pouco daquela igreja que já lhe parecia insípida e tediosa no começo, e que mais tarde se revelaria ainda idólatra e dogmática.

Na juventude, viveu a rebeldia e a inconsequência dos jovens, sem espaço para acomodar “essa coisa de religião”. Usou suas drogas e tomou seus drinks, fornicou e mentiu, apaixonou-se e odiou, contestou coisas contestáveis e incontestáveis, praticou a rasa rebelião dos inconvictos.

Sentiu irromper, mais tarde, os primeiros e inevitáveis sinais de um vazio incômodo que não se deixava preencher pelas paixões ou pelo hedonismo. Buscou, então, no lastro do cientificismo, na abstração da filosofia, no conforto da espiritualidade, o completar daquele vazio. Foi baixo-espírita e kardecista, foi budista e teosofista, foi místico e exotérico. Oriente e ocidente, dogmatismo e misticismo, cristianismo e animismo, muitos 'ismos' concorreram sem sucesso para ocupar aquele buraco na alma.

Desanimado, pairou por um tempo sobre o limbo do agnosticismo incerto, sem desconfiar que seu ponto de ruptura, a sua linha internacional das datas, o seu divisor de águas, era iminente.

Sujeito, como todo vivente, às mazelas da existência, o destino girou sobre os calcanhares e o pegou desprevenido. A desgraça se abateu e amealhou a pouca paz que ainda possuía. O sofrimento vergou-lhe a espinha, a dor o fez dobrar sob o peso da impotência, o desamparo gritou a necessidade irrevogável do socorro sobre-humano. Pela ferida aberta vertia o gosto amargo do abandono, pela mesma ferida penetrava uma experiência nova, a experiência do contato com o "poder supremo"...

O espírito quebrantado encontraria, enfim, a paz. O peso incômodo da dúvida seria substituído pela confortável leveza da fé. O vazio interior se encheria com a plenitude de uma “verdade” absoluta. Aqueles seriam dias intensos, tanto quanto os mais intensos dias da primeira paixão adolescente – mas, ao contrário daqueles efêmeros arroubos da juventude, anunciava-se um sólido e duradouro relacionamento.

Hoje ele é homem resignado, mas irredutível nas suas convicções. Estoico como o filósofo, lacônico como o espartano, ele serena ante a transitória inquietação da existência. Hoje, nos seus incompletos quarenta anos, os laivos de remissivas dúvidas se retém na portada da fé vigorosamente guarnecida pela certeza de um êxito: o porvir. Ele agora se deixa acalentar pela fé inabalável nas outrora improváveis abstrações que passaram a nortear a sua vida.

Fervoroso e confiante, não teme a morte física. Sabe que dela brotará a recompensa final e fundamental, diametralmente oposta às posições filosóficas, metafísicas e éticas dos embusteiros que lhe vendiam falsas promessas e crenças vãs.

Todavia, em segredo, no seu humano e temeroso íntimo, ele hesita. Com efeito, e naturalmente, teme o desconhecido. E mal sabe, nesta manhã de domingo, que o fim espreita furtivo na aresta da próxima esquina...

III

Uns pombos saracoteiam pelo asfalto. Os estampidos provocam um voo desnorteado, espécie de voo atávico dos pombos da cidade que, por causa de séculos de caos urbano, perderam a natural e acurada habilidade de voar. Os estampidos também jogam todos no chão, exceto dois ou três ébrios que olham cambaleantes ao redor e exclamam ‘que porra é essa?!...’.

Ele sente apenas o impacto lancinante e lacerante do projétil a despedaçar a base do occipital. A pancada arremessa sua cabeça para frente e depois para trás, resposta involuntária do próprio corpo à inércia provocada pela violência do choque.

Se tivesse a chance de descrever o que sentiu na fração de segundo que sucedeu o impacto, falaria do zumbido que simultâneo se assomou aos seus ouvidos, nascido baixo e imediatamente crescido até o limite do ultrassom. Descreveria com assombro a visão do mundo a girar impreciso ao seu redor, a subitânea perda da percepção do solo sob os pés, a sensação de sangue morno a escorrer pelo pescoço.

Não mencionaria sequer vestígio de dor, nem do ferimento nem da queda. No preciso instante da concussão, sua corrente sanguínea fora inundada por uma torrente desse poderoso entorpecente natural, mecanismo eficaz com o qual a natureza equipou os viventes para os episódios de dor e estresse intensos.

Se tivesse mais tempo, relataria ainda a visão de um túnel, e de uma luz etérea a esperar no fim do mesmo túnel; e diria que na medida em que se aproximasse da luz, mesmo ofuscado pelo seu brilho, seria capaz de divisar os vultos de uns entes espectrais que, no seu íntimo, saberia acolhedores. Falaria também de uma paz indizível, nunca antes experimentada, que sobejaria o êxtase dos momentos mais elevados na presença daquele seu deus.

Na verdade, naquele instante, o cérebro privado do sangue vital que vaza pela ferida aberta e obriga o coração a se render à falta de pressão, trava uma luta inglória para manter as sinapses vivas. Mas, na falta do oxigênio precioso, o cérebro se apaga pouco a pouco, como um longo corredor iluminado por uma sequência de lâmpadas fluorescentes a piscar nervosamente antes de se extinguirem, uma a uma. Todo o resto é impressão, sensações que um cérebro moribundo imprime nos resquícios dos sentidos por meio de um último vestígio de consciência.

Na verdade, ele está morrendo...

E o tiro que o matou partiu de uma arma anônima disparada por motivo fútil numa prosaica briga de boteco regada a muito álcool e quase nenhuma razão.

IV

Agora, ele entra numa dimensão desconhecida...

Primeiro descobre que não sente o peso do próprio corpo, cuja carga reclamada pela gravidade suportara por toda a vida. Experimenta uma paz intensa, uma leveza singular se manifesta pela ausência do corpo físico. Apesar de não ter mais olhos para ver, ou ouvidos para ouvir, ou tato para sentir, percebe um algo de plenitude...

Não está só. Ao contrário, descobre-se parte integrante de um universo denso, povoado por entes que se assomam e se completam, intuitiva e naturalmente, com o propósito único e inexorável de ser parcela de um infinito indefinível.

Agora, ele já não é mais ele.

Seu nome e sobrenome foram alijados da sua essência. Não requer mais ciência de coisa alguma, está saciado de todas as respostas a todas as perguntas. O entendimento é pleno, a liberdade é absoluta...

Agora, ele é completamente livre. Livre da consciência, livre de si, liberto do mundo... E se ele é livre, agora, é porque habita o mais completo e absoluto... Nada

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2 comentários:

Mariê disse...

Adorei! As reviravoltas das certezas e dos fatos estão fantásticas.

Belíssima crônica, Preto.

Marcello disse...

Que bom que gostou, Preta.

Bj