segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O Ler e o Prazer

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Jean Jacques Henner, 'La Liseuse'
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Além do preço a ser pago em moeda corrente por uma boa edição de uma boa obra literária, o prazer da leitura tem outros custos. A preguiça, por exemplo. Antes de lamber a ponta do indicador e virar a primeira página, a preguiça é o primeiro obstáculo a ser superado. Ah, pecadinho insidioso, tão doce e humano que sozinho poderia lotar o inferno... se tal lugar existisse (aliás, a se confirmar o inferno, acho que a preguiça só perderia em número de condenados para a luxúria).

Transgressões à parte, ler requer tempo também. E o tempo, em tempos hodiernos, pode ser despendido numa lista de atividades, digamos, menos custosas (e menos nobres) – um programinha de televisão, um filminho no DVD, um chopinho, um cineminha... (sequer menciono o Golias desse David: a tal Internet; este é assunto vasto, pra outra ocasião).

E há também, last but not least, a velha dificuldade com a qual todo leitor, invariavelmente, esbarrará ao longo da sua vida literária: encontrar um bom livro (previno que bom e ruim, aqui, como de resto em qualquer lugar, são conceitos vagos e flexíveis, pessoais e intransferíveis).

Livros pela metade, já li alguns; daqueles que não passei das primeiras páginas, há uma pilha. Entre os que li até a última linha, alguns foram lidos com tal estoicismo que faria Zenão ruborizar sob os pórticos da velha Grécia – e se trato aqui do prazer da leitura, ‘estóico’ não seria um termo precisamente adequado para adjetivar a prática.

De tempos em tempos, todavia, cai em nossas mãos, por misteriosos desígnios, aquele livro. O prazer é tanto que o bloco de papel só não nos acompanha ao banho – precisamente por ser de papel. Está no café da manhã, sacode com a gente no ônibus, almoça com a gente, divide a cama com a gente... Seja em público ou na privada, ele não nos larga.

Tive meus livros assim. Quando criança, não desgrudava de uma coleção de bolso de clássicos de aventura (Verne, Dumas, Wells, Swift e outros), raro presente de aniversário. Li de um fôlego só. Já menino crescido, meu avô me apresentou ao Para gostar de ler, aquela deliciosa coleção temática de crônicas e contos. O tempo passa, outros achados: O apanhador no campo de centeio, A metamorfose, Cem anos de solidão (é quando descubro García Marquez e dele procuro ler pouco menos que tudo). E o mesmo segue acontecendo com outros autores – poucos outros autores.

E nas intermitências das boas (e raras) descobertas, os longos períodos de estiagem. A pessoa peleja, peleja, e parece que nada é bom o bastante. Foi numa dessas secas que me atrevi a ler José Saramago, e comecei pelo Ensaio sobre a Cegueira *... Pronto, aconteceu outra vez!

Saramago é, numa palavra, alegórico. E suas alegorias são, noutra palavra, originais. Tanto quanto seu estilo – que, a propósito, pode assustar num primeiro momento. Sua narrativa peculiar pode intimidar o neófito; o leitor desavisado, que espera a fluidez comezinha de um texto tradicional, corre o risco de deitar fora aquela coisa esquisita, de parcos parágrafos, de virgulação econômica, sem travessões, interrogações e exclamações.

Mas, alvíssaras, eu resisti! E resistindo descobri a sátira elegante e bem-humorada do grande autor português. Com a sua ironia fina, Saramago proporciona um raro prazer: partilhar de uma visão iconoclasta das instituições,  que banalilza a tradição em benefício do espírito liberto, isento de imposições morais, livre para pensar. Descobri esse tesouro, e continuo descobrindo, agora com As intermitências da morte ** – a morte convertida em personagem é o motejo, um modo criativo e hábil de falar da vida com bom humor, espírito crítico e ironia.

A seguir, um aperitivo:

“Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas.” (p. 65)

"(...) as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que os nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste (...)” (p. 72)


Aqui, outro aperitivo


* SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
 
** ____ . As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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2 comentários:

Mariê disse...

Eu também adoro o Saramago, ele é apaixonante.

E esse teu texto ficou excelente, Nego.

<3

Marcello disse...

Obrigado, Nega.
Bj.